domingo, 11 de abril de 2021

CONTO DA SEMANA

 Bucha de canhão e sobejo de guerra!



Por Pádua Marques (cronista, contista, romancista e membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24.)  

Ninguém na casa de Mundica Brandão, nos Tucuns, dormiu um pingo que fosse naquela noite de 31 de agosto, depois de terem ouvido na Rádio Educadora a notícia de que o Brasil havia entrado na guerra contra os alemães. No outro dia bem cedo correu na praça da matriz a mesma notícia e chegou pelas ruas e casas de comércio, na mercearia de seu Bembém e tudo o mais, que era lugar de ajuntamento de gente importante na Duque de Caxias, o Porto Salgado e arredores. Pouca gente meteu a cabeça e os pés fora de casa, tamanho era o medo.

Mundica Brandão tinha dois filhos, rapazes feitos, de pouco mais de vinte anos. José de Arimateia e Genário, de boa altura, trabalhadores no comércio na Rua Grande, ali nas proximidades dos Franklin Veras. De madrugada a mãe teve um tino de arrumar as malas deles dois e mandar incontinenti pra casa da avó, num povoado pra além da Barra do Longá, lugar que ninguém, nem mesmo doutor Mirócles e seu Acrísio Furtado, haveriam de ir buscar e mandar pra guerra. Pelo que se andava falando na Parnaíba inteira o governo tinha preferência por homens solteiros.

Muita gente já estava se escondendo na casa de parentes ou até casando assim de uma hora pra outra. Tudo pra evitar o recrutamento. Muita gente pelo que se contava, que havia sido apanhada em jogatina de damas, baralhos e palito, de noite nas ruas escuras dos Tucuns, nos cabarés da Coroa, no cais do porto, agora estava preso no Arsenal pra depois ir direto pra guerra na Itália! Muita gente agora presa, era o que se contava e aumentava a conversa, chorava noite e dia arrependida de ter passado o tempo todo na vagabundagem na Parnaíba.

Dona Mundica Brandão e outra vizinha, de nome Celestina, marcaram de ir até na casa de doutor Raul Bacellar, na Rua Vera Cruz, pedir pelo amor de Deus que desse uma força de livrar os filhos de serem levados pra o Arsenal. Até que Mundica pensou em padre Roberto Lopes, amigo da sua família e que batizou e casou muita gente nos Tucuns. Quem sabe ele não ajudasse evitando aquele sentido medonho que vivia fazendo ninguém dormir um pingo na Parnaíba.

Mas as conversas, vindas das rodas mais bem informadas, eram de que pouca gente na Parnaíba tinha condições de ir pra guerra na Itália. Os comerciantes da Rua Grande já andavam se pelando de medo daquele estado de beligerância no mundo com as encomendas de cera de carnaúba rareando e tudo o mais. Havia sido atacado um navio brasileiro no Mar Adriático em março de 1941 e naquele ano afundado um navio cargueiro nas costas do Caribe, o Cabedelo. O momento era de muito desassossego.

Mas entre os ainda poucos estivadores e corretores de cargas no porto Salgado, aquelas noticias ouvidas pela Rádio Educadora de Parnaíba deixavam qualquer conversa igual fosse saída de velório. Dona Mundica Brandão agora estava pronta a ir até a casa de doutor Mirócles pedir por tudo quanto era santo pelos seus filhos. Seus meninos não poderiam ir pra uma guerra na Itália! Cobria Getúlio Vargas de tudo quanto era nome feio. Filho dessa, filho daquela! Se fosse preciso ela tinha coragem de ir falar com o

presidente no Rio de Janeiro, pedindo ajuda a seu Zeca Correia e outros mais homens de poder na Parnaíba e se ajoelhar nos pés deles e pedir que não deixassem seus filhos irem morrer longe de seus olhos. Virarem bucha de canhão, sobejos de guerra!

Encasquetou até que se fosse preciso iria até Teresina falar com o interventor Leônidas Melo. Mas aconselhada por uns poucos acabou caindo das carnes. Enquanto isso tinha muita gente fugindo na calada da noite pra de madrugada no rumo da lagoa da Prata e entrando de Maranhão adentro, se escondendo com medo de numa hora pra outra chegasse na sua porta um pelotão pra levar direto pra o Arsenal. E a notícia era de que lá entrando ninguém saía!

Chico Delmiro, rapaz solteiro, trabalhando de carroceiro, uns vinte e seis anos, seu Sebastião Pinto, sapateiro, homem casado com Conceição e pai de um menino de dois anos, Antero Conceição, ajudante de quitanda, filho de seu Júlio Conceição, o Júlio do Sabão e por fim Raimundo Pestana, também solteiro, jogador de baralho. Todos se juntaram pra entrar de Maranhão adentro e só saírem de lá quando a guerra um dia acabasse. Não houve despedida.

Quem chorou, chorou escondido pra não levantar suspeitas. Naquela hora não tinha mãe, pai, filho e mulher. Era fugir e ligeiro. Muito vizinho andava agora com o ouvido na parede da casa alheia escutando o que se passava. No cair da noite daquela semana de início de setembro de 1942 os fugitivos foram chegando no canto da rua Vera Cruz e a um sinal tomaram uma canoa e entraram na Ilha Grande de Santa Isabel.

Do outro lado iriam tomando chegada e caminhando a noite inteira. Pouca coisa pra carregar. Mudas de roupa, dinheiro, fumo pra fazer cigarros, dois litros de cachaça, uma faca e um lampião, mas tomando cuidado. Iriam procurando as veredas até chegarem já nas terras do Maranhão, Araioses e Tutoia, isso já no amanhecido do dia. Nisso estariam livres. Deles, os quatro, a Parnaíba nunca mais teve notícias.

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