O PRIMO DO REI
Por Pádua Marques (*)
Gladstone Alfred Murphy puxou de dentro de uma bolsa de couro de crocodilo um maço de notas, uns papéis e fotografias e foi passando e mostrando pra todos aqueles homens suados e cheirando forte a aguardente. Uns nus da cintura pra cima, banguelas, barba por fazer, outros desconfiados e de mãos calosas ali naquela casa de barro, sem piso, coberta de palha de carnaúba, esperando a opinião deles, mesmo que fosse apenas um aceno de cabeça, pra tudo o que viam enquanto o inglês ia contando suas façanhas.
Murphy havia descido cedo do Hotel Carneiro no rumo do porto Salgado naquele sábado sem movimento no centro de Parnaíba, um dia depois de ter desembarcado num navio vindo de Tutóia, pra conhecer a cidade onde na segunda-feira iria tratar com os industriais e grandes comerciantes de cera de carnaúba sobre o destino de uma carga que havia sumido e que precisava de explicações. Mas acabou tomando foi o rumo dos Tucuns.
No caminho entre o hotel e o porto Murphy encontrou Timóteo, um caboclo que de tanto trabalhar no porto Salgado, a sol e sereno, até entendia do que um inglês estivesse falando. O estivador puxou conversa, ganhou uma moeda e acabou servindo de guia naquele mundo de gente miúda no sábado. Da rua Grande com mulheres pobres pedindo esmolas nas portas de armazéns e lojas. E o inglês foi vendo aquilo tudo, às vezes correndo a mão na caneta pra fazer alguma anotação e perguntando isso e mais aquilo.
Naquele sábado de outubro de 1941 o súdito do rei Jorge VI ia puxando conversa, querendo saber de tudo, se admirando dos armazéns, das torres das duas igrejas, o Cine Éden, as mercearias e a praça da Graça, que até lembrava a sua agora distante Londres, a passagem de alguns poucos carros, as carroças puxadas por burros fazendo mudanças, os botadores de água, as mulheres lavando roupas no cais, os meninos nadando e dando cambalhotas nas proximidades de um guindaste e mais lá na frente um negro dando banho num cavalo dentro do rio.
Timóteo e Gladstone agora iam dar nos Tucuns, às vezes desviando de uma poça de água, um cachorro dormindo na frente de uma casa e a admiração do inglês ia aumentando. As casinhas de barro e cobertas de palha, umas pintadas e outras não, um cercado de madeira, galinhas, porcos soltos naquela rua tortuosa, uns jardins improvisados aqui e ali, mulheres catando piolhos de meninas suas filhas. Muito daquilo trouxe em Murphy a lembrança de uma viagem há três anos à Cidade do Cabo, na África do Sul.
Vendo aquele homem de boa estatura, diferente nos traços, branco, cabelo acobreado, bem vestido, com cara de estrangeiro e já àquela hora do dia, sol alto, muito suado, muitas mulheres iam saindo às portas. Muitos meninos estavam nus e descalços. Até que Timóteo achou de ir procurando a sombra e se chegar em casa de uma conhecida, dona Maria José, mulher de seu Pedro Barqueiro e pedir um pouco de água pra eles beberem naquele sol de quase do meio do dia. As duas visitas foram recebidas com toda a cerimônia.
O estivador foi logo dizendo que o inglês era seu amigo e vindo de Londres decretado pra Parnaíba fechar grandes negócios sobre cera de carnaúba com a Casa Inglesa e os Marc Jacob. Coisa de milhões de libras esterlinas! Uma das filhas da dona da casa correu na cozinha pra fazer um café e a outra trouxe uma rede de pano pra Murphy descansar da viagem a pé entre o porto Salgado e os confins dos Tucuns. Haveria de estar enfadado!
E Murphy foi gostando de ficar ali com os pés fora dos sapatos, no meio daquela gente miúda, pobre, ordinária. Enquanto esperava o café vindo da cozinha ia se esforçando no pouco português que sabia falar, ia falando de sua terra, sua Inglaterra, sua Londres e seu rei. Mostrou uma foto sua em frente ao Palácio de Buckingham, outra em Trafalgar Square e mais outra em London Tower. Depois passou a falar da guerra se intensificando na Europa, do que poderia acontecer no mundo.
Timóteo estava entre alegre e cheio de rapapés pra com o corretor de cera de carnaúba que iria dar um impulso na Parnaíba. Mostrou pra todo mundo a moeda ganha de Murphy. Ali naquela casa de pouca mobília, de duas moças e uma mulher sem muita beleza e muito pobre dos Tucuns, o estrangeiro puxou de dentro da mochila de couro um mapa do Brasil e com o dedo furabolo tentou mostrar onde ficava Parnaíba no distante e desconhecido Piauí.
Trazido pelas moças e tomado o café, o guia fez menção de que estavam de saída, pediu licença. Ainda tinham um dia inteiro pela frente e muita gente pra ver. Quem sabe até pudesse ainda ver doutor Mirócles. E vieram outras pessoas pra porta da casa, admiradas, curiosas. Umas até mangando e outras achando graça daquele homem estrangeiro tentando falar o nome Parnaíba. Timóteo foi abrindo caminho e dizendo que mister Gladstone Alfred Murphy era primo do rei da Inglaterra e amigo da Parnaíba! Viva o rei! Viva o rei!
Pádua Marques é contista, cronista e romancista. Membro do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba e da Academia Parnaibana de Letras. Cadeira 24.
Como contista, cronista e romancista, Pádua narra como grande historiador, ajuda a não esquecer nosso passado.
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