“Segundo a maioria dos autores” (a maioria dos autores não quer dizer absolutamente
nada, mas, não se sabe por que, muita gente escreve isso, mesmo sem nunca ter lido
sequer a minoria dos autores), ou... “Segundo as últimas estatísticas” (isso tampouco
significa alguma coisa), a cidade de Parnásia detém a maior densidade mitográfica do
Brasil.
Para que servem expressões como “alguns autores”, “de acordo com as estatísticas”, ou
“as últimas pesquisas”, se não se identificam autores, obras publicadas, fontes, datas,
metodologia, se os dados são oficiais e confiáveis, como foram processados e
divulgados, etc.? Se está apenas no mundo do “eu acho que”, “eu tenho uma teoria”,
etc., e o leitor nunca vai poder achar (no sentido de localizar) nada? Está claro que esse
bolodório todo só tem uma utilidade: enganar. E ainda dizem que é científico haha.
E a tal densidade mitográfica? Diabéisso? Pura invenção, mas... com um pouco de
acrobacia intelectual, pode-se dizer que se trata de um “conceito científico,
estatisticamente mensurável”. Não ficou bonitinho assim? Engana bem, assó:
construindo o conceito em percentuais simples, trata-se da relação (divisão) entre o
número de mentirosos (numerador) e a população total da cidade (denominador), em
determinado ano e local. Finalmente, multiplica-se o quociente por 100, desprezando-se
o resto, deixando uma ou duas casas decimais, a gosto, igualzim a uma receita de bolo.
A depender da conveniência e do grau de malandragem do “pesquisador”, pode-se
considerar tanto a população total quanto a população adulta – a partir da idade de 14
anos, por exemplo. No caso de o pesquisador-acrobata optar pela população total, ele
está considerando que “algumas crianças” já nascem mentindo – o que não deixa de não
ser muito pouco improvável hoje em dia, com certeza. Vixe, agora foi queu num tindí
nada haha. Mas ainda não terminou. Aliás, isso não termina nunca, enquanto tiver
financiamento... Resta fazer algumas comparações, rodar um modelo estocástico
sofisticado, produzir um “artigo científico”, apresentar num evento igualmente idem, e...
tcharã!, anotar no curriculum vitae. Blz?
Parnásia ganhou, de para-quedas, vários apelidos. Isso aconteceu durante as campanhas
eleitorais, quando um monte de candidatos disputavam pra ver qual para-quedas
chegava primeiro ao solo. Como dois para-quedas chegaram ao mesmo tempo, até hoje
se discute a seguinte e importante questão: Parnásia deve ser o portal da Chapadinha do
Bacuri (hoje em dia, toda cidade quer ser portal de alguma coisa) ou portal dos
Tabuleiros do Canapum? Em meio ao conflito, um grupo expressivo de vates
parnasianos propôs uma terceira via, bem em cima do muro:
– Parnásia deve se chamar “Portal das Ilusões”.
Mas, qualquer que seja o apelido, tanto faz, porque, como toda cidade do interior,
Parnásia também tem seu mentiroso favorito, bastante conhecido de todos. Não lembro
o nome dele, mas isso tampouco importa. Quem vai acreditar que o nome do mentiroso
é de verdade? Mentiroso inventa o nome que quer, a começar pelo próprio nome
próprio. Fico imaginando quanta mocinha por aí tem vergonha do seu próprio nome
próprio haha. Daí, muitos pais otários e os notários inventam ortografias bem esquisitas
para nomes de batismo, desses inspirados em séries americanas, biguibróderis, e
novelas mexicanas. Pâmela (que o velho computador do cartório logo corrige para
Panela, grr, que raiva!), Jenifer (ou Jennifer, ou Jenniffer, ou Jenyffer), Adriele (ou
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Adryelle, ou Adriely, ou...), Samantha... aff, daí a pouco as pobres meninas têm que
arranjar outro nome, um apelido qualquer, para não serem confundidas com travecões
de beira de calçada. Êlas (ou el@s, ou elxs) adoram! Tudo começou com Priscila ou
Priscilla, ou Pryscila, ou Pryscylla... Aff... agora, chega, porque...
Mentir não é pecado. Aliás, todos nós precisamos mentir. Pecado é acreditar naquilo
que o mentiroso diz, por ser mais cômodo. Incômodo é não acreditar, desconfiar e ter
curiosidade, ter que estudar, localizar e consultar documentos comprobatórios, verificar
se as informações procedem, etc. Mesmo assim, preciso achar um nome para o “meu
mentiroso favorito”. Por exemplo... Galerão! Que tal? Então, fica combinado assim:
toda cidade do interior tem o seu Galerão. Parnásia, também. Galerão, que vem de
galalão, mais tarde desnasalizado para galalau. Significa homem grande, gigante. E o
leitor já desconfia que o nosso Galerão parnasiano só pode ser pequeno, magro,
baixinho, quase um anão. Explico, com outra história dentro da história:
Istrudia precisei consertar um rádio. Fui ao troca-troca e perguntei quem podia trocar a
minha fonte, de 110 pra 220. Aliás, a fonte 110 já tinha torrado, porque o Brasil é um
dos poucos países do mundo cuja população convive em larga escala com duas
voltagens e duas ciclagens. Isso aumenta o consumo de fontes, transformadores,
tomadas de três pinos, adaptadores... Apagões são bem-vindos para a indústria,
comércio, locadoras de geradores, eletricistas, companhias de seguros, etc. Isso é muito
bom, porque gera (disculpaê o trocadilho) empregos. Quanto mais acidentes, melhor.
Mais se empregam paramédicos, motoristas de ambulâncias, bombeiros, instrutores de
cursinhos rápidos de técnicas de bioimagem para “doutores” médicos, “doutores”
dentistas, “doutores” delegados, enfermeiros, fisioterapeutas, laboratoristas, planos,
funerárias, enfim, toda a cadeia produtiva da saúde. O resultado é um maior crescimento
do pibinho (há quem chame isso de desenvolvimento haha). Aff, já tou na enésima
história, preciso voltar à segunda história dentro da primeira história. Então... deixa eu
ver... Ah, daí, alguém apontou para uma portinha bem estreita, e disse:
– Vá lá e pergunte pelo Gordim, ele conserta seu o rádio, na hora.
Agradeci, fui até a portinha, sempre me perguntando como é que um gordinho passa por
uma porta daquelas. Espiei lá dentro. O ambiente tava escuro, esfumaçado, com cheiro
de cinzeiro usado. Mas deu pra perceber um carinha bem pequeno e magricela, só pele e
osso, com um eterno cigarro aceso entre os dedos amarelados da mão esquerda, olhando
pro nada, sentado num tamborete de tiras de couro de boi, trançadas, brilhantes e bem
polidas móde os fundos de muitas calças históricas, conversadeiras e peidantes.
Perguntei, com forte sotaque (e estilo) parnasiano:
– Ei, tu conhece aqui uma pessoa que conserta rádio, por nome Gordim?
Tirando lentamente da boca o que ainda restava do cigarro (havia mais cinza do que
outra coisa), o magrelo prontamente respondeu:
– É sou eu!
Resolvido o problema do rádio, com maestria, o caso é que, quando o maior mentiroso
da cidade morre, logo aparece um substituto. O enterro de um grande mentiroso é
sempre muito disputado. Todo mundo acorre, desde o velório. Querem ter certeza de
que o mentiroso morto tá bem morrido mesmo, mortim – ou, então, querem ver se ele
vai levantar do caixão, a qualquer momento, com cara de coringa chicó, dizendo:
– Morri não! haha!
Ninguém vai querer perder essa, vai? Enterro de mentiroso-celebridade só perde pra
enterro de malandro, pois nesse campo a concorrência é muito grande. Lembra até
aquele filme “O homem que amava todas as mulheres”, do genial Truffaut. O filme
começa com o enterro de um cara muito malandro e bem dotado. Durante sua vida, ele
enganou tanto a esposa, que o seu funeral foi honrado por um número incalculável de
amantes, piriguetes, mocreias, quengas e barangas de toda ordem – o que confirma uma
grande verdade científico-sertaneja: “amor de rapariga é que é amor”.
Cepãdã, Galerão não era qualquer mentirosorréichinfrim. Ele era um mentirosocelebridade muito especial, porque tinha uma grande particularidade: acreditava em
tudo aquilo que ele mesmo dizia (ou inventava, sei lá). Jurava pela mãe dele que era
verdade. Se alguém duvidasse, rolava fáite. Por ser violento e ter porte de arma,
ninguém duvidava de nada que ele dizia, mesmo sendo ele minúsculo. Talvez seja essa
a origem da tal “verdade científica” haha.
Parnásia, é uma cidade “monarca de grande”. Lá, tudo é exagero. Parnásia aloja uma
multidão de mentirosos. Por essa razão, a cidade ostenta uma densidade mitográfica
equivalente à das grandes metrópoles. Mas, comparada com pequenas cidades do
interior, os parnasianos detêm a maior concentração de mentirosos por mil habitantes.
Nas suas aulas-espetáculo, Suassuna gostava de dividir a humanidade em dois grupos.
Por exemplo, de um lado, as pessoas que já foram à Disney pelo menos uma vez; de
outro, as que nunca foram. Com relação à mitomania, ele certamente dividiria os
parnasianos em duas metades: de um lado, aqueles que mentem; de outro, aqueles que
mentem muito. Resta agora pesquisar a terceira metade haha. Fica a sugestão como
tema de pesquisa. Com a palavra, a comunidade científica, pois ainda restam as últimas
bolsas remanescentes da crise.
Vitor de Athayde Couto (*) Candidato à cadeira 27 da Academia Parnaibana de Letras que tem como patrono Ovídio Saraiva.
(Este texto inédito integra a série “Crônicas de Parnásia”, livro em edição).
Texto de espirituosidade sutil.Muito bom.
ResponderExcluirPaulo de Tarso.