Pádua Marques (*)
Veio dos lados da cozinha um barulho de louça caindo. Dona Isabel já estava recolhida à camarinha e Simplício ainda sentado com os pés fora dos chinelos quando foi alertado de que alguém estanho estava dentro de casa. Correu a mão na vela e chamou Florindo que dormia nos fundos da casa. Antes, pegou o punhal em cima da mesa e apurou o ouvido.
Simplício era gago quando tomado por uma situação de perigo. Ao ver Florindo entrando pelo corredor mal iluminado, ficou ainda mais gago. Os dois homens foram caminhando na ponta dos pés no rumo da cozinha enquanto dona Isabel e as filhas ficaram na porta dos aposentos esperando saber do que se tratava. Não era coisa de rato mexendo nos trens da cozimha e na carne salgada. Era coisa de gente. E essa gente, se é que se podia dizer ser gente, era um escravo.
Pegaram o negro. Alto, de canela fina, nu da cintura pra cima, catinga de aguardente e cara bexiguenta. Uns trinta anos, se pouco. Os olhos vermelhos que nem postas de sangue. As palmas das mãos amarelas. Florindo mandou que cantasse o nome e de onde estava fugindo. O negro calado estava, calado ficou. Simplício estava mais atrás, segurando a vela na altura dos olhos. Outros criados chegaram e amarraram o negro.
Arrastaram pelos fundos da casa e lá no terreiro, Simplício desferiu uns dois golpes na cabeça com o cabo do relho. Não queria mancha de sangue dentro de sua casa. O mel desceu. Ferido, o negro disse que estava fugindo do Maranhão, onde era procurado porque matou um tio. Veio à procura de comida, um pouco de sal e farinha. Era conseguir a comida e ganhar o rumo do porto pra comer com os embarcadiços que subiriam pra Tutoia e depois São Luiz.
Foi retirada a faca que o negro trazia no cós da calça e entregue a Simplício. Pego com a mão no que era alheio, dentro da casa, agora iria arrenegar da hora que nasceu e de onde havia vindo. Mandou amarrar o negro num tronco ainda naquele início de madrugada. Voltou pra camarinha e tratou de acalmar a mulher e as filhas. No outro dia era mandar saber nas redondezas sobre um cativo assim e assim, como quem não quer nada. Ainda estava escuro quando Florindo e mais dois negros da casa grande começaram a surrar o fugitivo ladrão.
A ordem de Simplício era de que fosse antes do sair do sol. Pra não dar motivo que ninguém se acordasse. Surrou, fosse levado pra bem longe. Nada de compaixão com o diabo daquele negro! E sendo ladrão, pior ainda! Se não aguentasse e morresse, que jogassem o corpo bem longe pra os urubus comerem. Carne desgraçada! Nem valiam a fortuna que custavam no cais de Recife e de Salvador. Custavam mais que o gado pra tirar carne e leite.
Simplício, que não falava com negros cativos, não dormiu o resto da madrugada. Não que tivesse remorso pelo que Florindo estava fazendo com o escravo ladrão. Lembrou o irmão Raimundo, assassinado há vários anos pelos inimigos da sua família, na biqueira da casa. Aquela morte tão cruel e que até agora vinha acabando com sua saúde. E agora aquilo, ver sua casa invadida e todo o risco de perder o sossego com dona Isabel, a fortuna e as filhas naquela terra ingrata. Um negro dentro de casa. Um negro entrando pelos fundos da casa e já de posse de uns pratos! Pois que se morresse, que fosse enterrado com o produto do roubo! Servisse de lição! Lá pelas tantas ouviu de longe umas vozes no meio do largo. Eram de certo Florindo e os outros que haviam terminado o serviço.
O negro morreu de tanto levar punhaladas. Foi por isso que não se ouviram gritos naquela madrugada. Depois de darem muita aguardente foram matando aos poucos. Seu corpo foi enterrado no meio do campo, um pouco afastado da igreja com os objetos roubados da cozinha de dona Maria Isabel Thomásia de Seixas e Silva. Pratos, talheres, um pouco de sal e de farinha dentro de um paneiro. Uma miséria. Até hoje, no lugar onde está enterrado existe um formigueiro.
(*) Pádua Marques, ocupa a cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras. É jornalista, contista e romancista.
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