sábado, 5 de abril de 2025

SONS DE UM TEMPO DOURADO

 

Imagem meramente ilustrativa copiado do site Casa Vogue - Globo.com 

SAUDOSA MALOCA

–  Cê tá admirado da artura desse edifiço, né seu moço? Pois saiba que ali foi minha morada por muitos anos.

  –  Como assim?, perguntou o cidadão bem trajado,  terno azul-marinho,  gravata  branca com listras azuis; segurava uma pasta do tipo 007; estava em pé, na calçada de outro edifício, no  lado oposto da rua  esperando o semáforo ficar vermelho para que pudesse atravessar,  e quem sabe, dirigir-se ao edifício alto que ele estava a observar. Olhou para o seu interlocutor com um ar de desconfiança, visto que o mesmo estava com ares de morador de rua, mas ao mesmo tempo despertou-lhe uma certa curiosidade e perguntou: o que aconteceu? Conte a história...

 – Pois foi ali seu moço, que eu, o Mato Grosso e o Joca, construímos a nossa maloca. Eu me chamo Adoniran Judson, sou vindo do Maranhão, o Mato Grosso, o nome dele mesmo é João Batista, recebeu o apelido de Mato Grosso, porque veio daquele estado, e o Joca, o nome verdadeiro é Joaquim Vidigal, é do Pará. Nois trabaiava num garimpo no Pará. Viemo pra São Paulo porque disseram que a vida aqui era melhor... e foi, até certo tempo...

À essa altura o semáforo já havia ficado vermelho, verde, alaranjado por mais de uma vez. O cidadão interessou-se pela história do Judson e pediu:

 – Conte mais senhor.

“Eu sou pedreiro, o Mato Grosso, ajudante de pedreiro, e o Joca, mestre de obras, construtor, um tipo de engenheiro, só pela intuição, porque nois não temo estudo. Mas todos nois bota a mão na massa” – prosseguiu. “Quando aqui cheguemo, tinha poucos prédios nesse bairro. Muito pouco. Ali era uma casa véia, um palacete assobradado, abandonado, já caindo as paredes. Bem ali mesmo, na esquina da Rua Aurora com Santa Ifigênia, neste bairro chamado de República”. O bairro era um lugar acolhedor, onde todos se conheciam e se ajudavam. Continuou Adoniran, nós trabaiava nas construção de casas. As sobras de tijolos, cimento, cal, telhas e outros material, nois ganhava e trazia pra cá. E foi assim seu moço que eu, o Mato Grosso e o Joca, construímos nossa morada. Como eu falei o bairro era calmo. Nos domingos de manhã nois ia assistir à missa na igreja de Santa Ifigênia; depois da missa aproveitava para reunir com os amigos assistir os               Demônios da Garoa, (que o chefe era meu charapa) tocando no “Bar dos Amigos” que ficava bem próximo de onde nois morava. Ah tempo bom! Ninguém brigava, não se andava armado, só se respeitava! Mais um dia, "nois nem pode se alembrá,  veio os home com as ferramenta e o dono mandou derrubá". "Que tristeza que nois sentia pois cada tauba que caía doía no coração". "Mato Grosso quis gritá, mas por cima eu falei que que os home tão com a razão e nois arranja outro lugar". E foi então que o Joca disse a frase que “Deus dá o frio conforme o cobertor”.  Eu sinto saudade seu moço, eu sinto saudade daquele tempo dourado de paz! E quando eu sinto saudade, eu venho aqui e fico espiando, espiando lembrando daquele tempo bom que o bairro era acolhedor, repito, que nois morava aqui e que não tinha a violência que hoje tem.

O cidadão que até então estava calado, limitando-se apenas a ouvir perguntou: “e hoje? Como vocês estão?” Ao que ele respondeu: "e hoje nós pega a paia nas gramas de um jardim" na Praça da Sé. 

O semáforo acendeu a luz vermelha, o cidadão despediu-se apenas com um “passar bem” e seguiu seu destino.

                                 XXXXXXX

Dias depois, numa manhã de domingo um automóvel de luxo para no Jardim onde eles estavam a morar. O motorista desce, procura quem eram os  que tinham aqueles nomes e quando informado, dirige-se até eles e disse-lhes: “meu patrão soube que vocês trabalham em construção e que são bons profissionais.  Ele pediu que eu viesse busca-los porque ele tem um trabalho para que vocês.   Entrem no carro por favor". Os três entre entreolharam-se e seguiram as ordens do motorista. No percurso, até chegarem a uma luxuosa mansão, não houve qualquer diálogo entre os quatro. Na mansão foram recebidos pelo proprietário, um cidadão educado que mandou os três sentarem-se nas cadeiras do jardim à beira da piscina e solicitou que os esperassem por um momento. Enquanto isso, uma doméstica os serviu com suco de uva e salgadinhos.

Adoniran reconheceu que se tratava do homem com quem conversara naquele dia em frente ao prédio onde outrora foi a morada dos três. Em poucos minutos o cidadão retorna e entrega-lhes um chaveiro contendo várias chaves, um envelope branco, lacrado, sem nada escrito, e lhes diz: “esta é minha gratidão por terem aceito a demolição da casa que vocês construíram sem nunca terem questionada nada na justiça.”   Comprei aquele prédio dos herdeiros de uma família cujos proprietários já haviam falecidos, prossegue o cidadão, construí aquele edifício alto, mas para isso vocês tiveram que ser expulsos do lugar. Fiquei sensibilizado com o que me contou este cidadão aqui apontando para Adoniran, e para compensá-los, estou presenteando-lhes com uma casa mobiliada no Bairro Santa Cecília, própria para vocês morarem. Neste envelope está uma procuração ao Cartório para que vocês transfiram, vendam ou façam o que quiserem com a casa. E tem mais, disse o cidadão, trabalharão para mim, em minhas construções enquanto quiserem.

Perplexos, Adoniran agradeceu em nome todos, enquanto lembrava-se das palavras do Joca: Deus dá o frio conforme o cobertor...

 

Texto do livro Sons de um Tempo Dourado - crônicas e contos (ficção nada de realidade) tendo por base as músicas que fizeram sucesso nas décadas de 1960/1970/1980 e mais.

 

 

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