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SAUDOSA MALOCA
– Cê tá admirado da artura desse edifiço, né
seu moço? Pois saiba que ali foi minha morada por muitos anos.
– Como
assim?, perguntou o cidadão bem trajado,
terno azul-marinho, gravata branca com listras azuis; segurava uma pasta
do tipo 007; estava em pé, na calçada de outro edifício, no lado oposto da rua esperando o semáforo ficar vermelho para que
pudesse atravessar, e quem sabe,
dirigir-se ao edifício alto que ele estava a observar. Olhou para o seu
interlocutor com um ar de desconfiança, visto que o mesmo estava com ares de
morador de rua, mas ao mesmo tempo despertou-lhe uma certa curiosidade e
perguntou: o que aconteceu? Conte a
história...
– Pois foi ali seu moço, que eu, o Mato Grosso
e o Joca, construímos a nossa maloca. Eu me chamo Adoniran Judson, sou vindo do
Maranhão, o Mato Grosso, o nome dele mesmo é João Batista, recebeu o apelido de
Mato Grosso, porque veio daquele estado, e o Joca, o nome verdadeiro é Joaquim
Vidigal, é do Pará. Nois trabaiava num garimpo no Pará. Viemo pra São Paulo
porque disseram que a vida aqui era melhor... e foi, até certo tempo...
À essa altura o
semáforo já havia ficado vermelho, verde, alaranjado por mais de uma vez. O
cidadão interessou-se pela história do Judson e pediu:
– Conte mais senhor.
“Eu sou pedreiro, o
Mato Grosso, ajudante de pedreiro, e o Joca, mestre de obras, construtor, um
tipo de engenheiro, só pela intuição, porque nois não temo estudo. Mas todos nois bota a mão na massa” –
prosseguiu. “Quando aqui cheguemo, tinha poucos prédios nesse bairro. Muito
pouco. Ali era uma casa véia, um palacete assobradado, abandonado, já caindo as
paredes. Bem ali mesmo, na esquina da Rua Aurora com Santa Ifigênia, neste
bairro chamado de República”. O bairro
era um lugar acolhedor, onde todos se conheciam e se ajudavam. Continuou
Adoniran, nós trabaiava nas construção de
casas. As sobras de tijolos, cimento, cal, telhas e outros material, nois
ganhava e trazia pra cá. E foi assim seu moço que eu, o Mato Grosso e o Joca,
construímos nossa morada. Como eu falei o bairro era calmo. Nos domingos de
manhã nois ia assistir à missa na igreja de Santa Ifigênia; depois da missa
aproveitava para reunir com os amigos assistir os Demônios da Garoa, (que o chefe era meu charapa)
tocando no “Bar dos Amigos” que ficava bem próximo de onde nois morava. Ah
tempo bom! Ninguém brigava, não se andava armado, só se respeitava! Mais um dia, "nois nem pode se alembrá, veio os home com as ferramenta e o dono mandou
derrubá". "Que tristeza que nois sentia pois cada tauba que caía doía no coração". "Mato Grosso quis gritá, mas por cima eu falei que que os home tão com a razão e
nois arranja outro lugar". E foi então que o Joca disse a frase que “Deus dá o
frio conforme o cobertor”. Eu sinto
saudade seu moço, eu sinto saudade daquele tempo dourado de paz! E quando eu
sinto saudade, eu venho aqui e fico espiando, espiando lembrando daquele tempo
bom que o bairro era acolhedor, repito, que nois morava aqui e que não tinha a violência
que hoje tem.
O cidadão que até então estava calado, limitando-se apenas a ouvir
perguntou: “e hoje? Como vocês estão?” Ao que ele respondeu: "e hoje nós pega a paia nas gramas de um
jardim" na Praça da Sé.
O semáforo acendeu a luz vermelha, o cidadão despediu-se apenas com um
“passar bem” e seguiu seu destino.
XXXXXXX
Dias depois, numa manhã de domingo um automóvel de luxo para no Jardim
onde eles estavam a morar. O motorista desce, procura quem eram os que tinham aqueles nomes e quando informado, dirige-se até eles e disse-lhes: “meu patrão soube que vocês trabalham em
construção e que são bons profissionais.
Ele pediu que eu viesse busca-los porque ele tem um trabalho para que
vocês. Entrem no carro por favor". Os três entre entreolharam-se
e seguiram as ordens do motorista. No percurso, até chegarem a uma luxuosa
mansão, não houve qualquer diálogo entre os quatro. Na mansão foram recebidos
pelo proprietário, um cidadão educado que mandou os três sentarem-se nas
cadeiras do jardim à beira da piscina e solicitou que os esperassem por um
momento. Enquanto isso, uma doméstica os serviu com suco de uva e salgadinhos.
Adoniran reconheceu que se tratava do homem com quem conversara naquele
dia em frente ao prédio onde outrora foi a morada dos três. Em poucos minutos o
cidadão retorna e entrega-lhes um chaveiro contendo várias chaves, um envelope
branco, lacrado, sem nada escrito, e lhes diz: “esta é minha gratidão por terem aceito a
demolição da casa que vocês construíram sem nunca terem questionada nada na
justiça.” Comprei aquele prédio dos herdeiros de uma família cujos proprietários
já haviam falecidos, prossegue o cidadão, construí aquele edifício alto, mas para isso vocês tiveram que ser
expulsos do lugar. Fiquei sensibilizado com o que me contou este cidadão aqui apontando
para Adoniran, e para compensá-los, estou
presenteando-lhes com uma casa mobiliada no Bairro Santa Cecília, própria para
vocês morarem. Neste envelope está uma procuração ao Cartório para que vocês
transfiram, vendam ou façam o que quiserem com a casa. E tem mais, disse o
cidadão, trabalharão para mim, em minhas
construções enquanto quiserem.
Perplexos, Adoniran agradeceu em nome todos, enquanto lembrava-se das
palavras do Joca: Deus dá o frio conforme
o cobertor...
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