A BARBA DO CAPUCHINHO
“Volta com um baú
carregado com peças d’ouro, que lhe
rouba um administrador,
antigo frade capuchinho”.
(Eça
de Queirós – A Ilustre Casa de Ramires)
Ilustração de Rodrigo Rafael |
Sobre o coronel Petro Madiche de Medeiros - respeitado comerciante, grande empreendedor no ramo varejista, atividade que exercia concomitantemente com a pecuária desenvolvida em mais de uma fazenda de sua propriedade - conta-se o seguinte fato tido como pitoresco para não se dizer deprimente.
Foi aquele inteligente cidadão, durante toda sua longa vida de trabalho e de boa prosa, a despeito do forte ranço do período colonial brasileiro embutido em sua patente comprada, um casto aparente. Sim, apenas aparente. Na verdade, o que se sabe através de relatos de alguns poucos que, vivendo muito, puderam privar de alguma de suas muitas aventuras amorosas, é que ele foi, a vida toda, um daqueles que sempre comungou com o ensinamento freudiano de que em tudo predomina o instinto sexual.
Conta-se mesmo que ele, de tanto admirar e de tanto ler as descobertas, as teorias e os conselhos de Freud, mantinha na parede, ao lado de sua mesa de trabalho, em uma moldura, a seguinte máxima da lavra do famoso neurologista austríaco: A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, já vivi muitos anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol...
Todavia,
quando para ele avizinhou-se o último pôr do sol; quando as suas pernas
perderam as forças para conduzir o seu cansado corpo ao interior do confortável
veículo que sempre lhe transportava de casa ao seu escritório localizado no
centro histórico da cidade, e vice-versa; quando a grande maioria dos seus
amigos deixou de buscar os seus sábios conselhos de viúvo experiente; ele
sentiu, atormentado, que o seu viço desaparecia para sempre, tal e qual
desapareceu o lucro que um dia teve com a cera da carnaúba. Daí para frente foi
somente ficar em casa, deitado e calado, remoendo o passado, esperando a hora
da partida.
Nada
mais conversava; nada mais queria porque nada mais lhe agradava. Apenas um
pedido, um último e talvez irreverente, porém indispensável pedido: queria uma fêmea. Pediu aos filhos em
um dia em que todos velavam ao lado do seu leito: queria uma mulher, fosse quem
fosse. Que lhe trouxessem uma mulher!
- Ainda sou homem!
Dizia
com ênfase, batendo no amolecido, mas ainda largo peito brasileiro.
- Estou com esta idade, mas não me troco por
certos jovens de hoje. Fui criado bebendo leite mugido com mel de abelha!... E
sempre concluía afirmando com toda a força que ainda saía do seu velho pulmão
nonagenário:
- Ainda sou macho!...
No
mesmo dia os filhos se reuniram em assembleia domiciliar, debateram muito e
concluíram afinal que quem consegue viver quase um século tem o sagrado direito
de pelo menos mais um minuto de felicidade e de orgia, e decidiram por
unanimidade: no início da noite seguinte, sem muito esforço e com módico
pagamento, trariam uma puta capaz de satisfazer o último desejo daquele ente
moribundo que demonstrou bastante ansiedade ao ser comunicado da decisão.
A
contratação da vadia não seria difícil porque entre a casa do ancião e o cabaré
mais famoso da cidade havia apenas duas ruas, sem movimento e praticamente
escuras à boca da noite.
Mas
ocorreu que uma de suas noras, pensando e agindo de outro modo e sem saber da
determinação dos filhos, marcou para a mesma noite a vinda de um frade
capuchinho que em nome dos sete sacramentos da Igreja Católica traria, ao
enfermo e em nome de Deus, a sagrada extrema-unção.
Como
os padres são sempre apressados quando se encontram no exercício de missões
desta natureza, chegou o capuchinho antes da meliante contratada e foi logo
entrando no quarto que teve a sua porta fechada pela nora religiosa.
Ali
dentro, sentado em uma cadeira ao lado da cama, o religioso melava os dedos em
óleo enquanto debulhava uma triste e comovente oração. O velho coronel, não
tendo mais forças para bem distinguir as pessoas, não percebia que aquele
piedoso presbítero, com aquela reza, roubava-lhe o seu tesouro – sua última
tentação perniciosa que ainda latejava em sua mente – Mas permitia, calado e
esperançoso. Cícero já explicou isto: Não há ancião que esqueça onde escondeu
seu tesouro. De modo que consentia, embora bastante resignado e apressado,
triste resmungo de baixo tom, porque podia se manter acreditado piamente
naquilo que sua imaginação permitia acreditar, e assim, passando a trêmula mão
na macia e espessa barba daquele ministro de Cristo, dizia quase sem voz:
- Ótimo, meu bem. Você é uma beleza! Já veio
pronta...
*Antonio de Pádua Ribeiro dos Santos, ex-presidente da Academia Parnaibana de Letras é poeta, escritor, cronista, contista, ocupa da cadeira de nº 01 que tem como patrono o educador José Pires de Lima Rebelo.
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