Por Pádua Marques *
Dos Tucuns até o
Cantagalo subindo pra o Macacal no rumo do Catanduvas, podia era procurar de
luz acesa. Toda a Parnaíba sabia e não guardava segredo e não via com bons
olhos aquela vida da filha mais nova do finado seu Doca Mariano Batista, a Nicinha,
já moça velha e amigada com um rapaz mais novo. Este, vindo do João Peres no
Maranhão pra ajudar no que fazer dentro de casa e agora tirando dela e da outra
irmã, Branca, o pouco deixado pelo velho comerciante antes de bater as capelas
dos olhos.
Se bem que Benício
Potassa, o agora rapaz feito chegou em casa de seu Raimundo Mariano Batista, o
Doca Mariano, ainda nem mudando a voz naqueles dias de 1928. Mas era afilhado
da dona da casa, dona Dadinha, tendo vindo do João Peres, no Maranhão, sua
terra. Veio ser criado, pra fazer serviços que as duas meninas mulheres não
tinham como fazer por serem serviços de homem. Puxar água no poço, ir correndo
num pé e voltar noutro no centro fazer alguma compra ou dar recados. Essas
coisas.
Benício Potassa ainda
menino e em casa de seu Doca Mariano e de dona Dadinha, quando não estava
fazendo alguma coisa pra casa largava a sair caçando calangos pelos quintais
alheios e nas cercas das casas nos Tucuns. Depois vinha mostrar pra Nicinha e a
outra, Branca, essa mais recatada, de pouco meter a cara na porta, sempre
agarrada com a mãe pra cima e pra baixo. Os calangos mortos e enfileirados
metiam medo nela. Depois os pobres bichos eram rebolados no mato. Branca dizia
que Benício era menino perverso, que quando morresse iria ser engolido por tudo
quanto era calango.
Quando a situação de
Doca Mariano Batista com a fortuna de dinheiro trocando de mãos e tudo foi
ficando difícil com os alugueis de casas e de pontos de quitandas nos Tucuns,
com as filhas já moças e sem vontade e pretendentes de casamento, o agora
rapazinho vendia mangas nas proximidades do Hotel Carneiro e do Mercado Central.
Mas era dito pra ele Benício Potassa que o apurado era pra comprar alguma muda
de roupa, um calçado e de vez em quando dar um passeio na Guarita ou na Coroa.
Doca Mariano, que era
rico, morreu pobre. Diziam que o motivo de sua miséria no fim da vida foi o
pagamento dos pecados por ter abusado de muita gente que lhe devia aluguel dos
pontos de comércio na Guarita, nos Tucuns e até no Alto do Cemitério. Donas de
cabarés na Parnaíba sofriam mais que sovaco de aleijado. Estas sofriam muito
com seus modos de cobrança. Outros diziam que ele mesmo, isso era coisa sabida
por todo mundo, foi muitas e muitas vezes ao Maranhão à procura de mocinhas
novas pra jogar no meretrício.
Morto ele e a mulher
dona Dadinha, perto um do outro, as duas moças já beirando os trinta anos
viviam se sustentando dentro de casa com o pouco que deu pra ficar. Aluguéis de
uns cinco pontos de comércio no Mercado Central e de duas casas na Guarita. E
Benício Potassa, o criado, tinha a vida dele, vivendo num quarto nos fundos do
quintal e vendendo no mercado suas mangas, suas goiabas, pitombas, cajás. Com o
apurado comprava uma roupinha aqui, um calçado mais na frente e mandava de vez
em quando algum trocado pra uma irmã no João Peres.
De uns tempos pra cá a
vida de Benício Potassa estava melhorando. Já podia entrar dentro de casa,
beber e comer até na mesa com as patroas, dar palpite em conversas, ia cobrar
os aluguéis dos pontos de venda e das casas da Guarita. Já não era mais o
tratador, o botador de água nos potes, o rachador de lenha pra cozinha e o
menino que antes cuidava dos canários de seu Doca Mariano. Quem o conhecia
agora se admirava da mudança. E a conversa de dentro das igrejas e de porta de
rua na Parnaíba era de que Nicinha Batista estava amigada com o criado de seu
falecido pai. E era verdade.
Branca era uma santa.
Só ofendia o que comia. Vivia dentro de casa, pouco ia à igreja de Nossa
Senhora da Graça, alguma festa de família, um batizado ou aniversário de um
filho de conhecido, a compra de um pano no seu Antonio Tomaz em frente ao
Mercado. Era de andar sempre com um chapéu de sol, mesmo que fosse dia nublado
pra chover. A outra, Nicinha, essa sempre foi mais saída pra lado de homem. Mas
as duas nunca casaram. Talvez porque Doca Batista era muito ruim pra elas
filhas e dona Dadinha. Dentro de casa e tendo a vida e o tipo de negócios que
tinha, ficava com medo delas levarem pra genro dele um camarada esperto demais.
Mas a conversa de ponta
de rua e de encontros de escada de igreja e saída de quermesses, das
fuxiqueiras da rua Conde D’Eu, era da vida de Nicinha, a filha mais nova de
Doca Batista, já chegada na idade e vivendo amancebada com um caboclinho sem
origem vindo do Maranhão. Caboclinho que não escondia os costumes. A ponto de
viver vendendo mangas numa esquina do Mercado Central na praça Coronel Jonas e
jogando apostado. Era um rapaz até de boa feição. De boa altura, de pele clara,
meio fogoió.
Numa dessas idas de
dona Nicinha Batista pra igreja de Nossa Senhora da Graça, o criado e agora
marido achou de ir junto. Branca ficou em casa tratando de fazer uns doces.
Vinham e a igreja já estava cheia de gente. Mas de longe, ainda quando
atravessavam o largo foram vistos chegando. Ela caminhando na frente e ele
Benício mais atrás, dando distância e mostrando humildade de condição de criado
da casa. Foi o bastante pra que na saída toda a Parnaíba ficasse fuxicando.
Nicinha não deu
importância ao que ficaram olhando e dizendo as mulheres de gente importante de
Parnaíba quando padre Roberto acabou a missa. Mas Benício tomou vergonha.
Vergonha talvez não fosse. Mas a patroa pegou na sua mão e os dois saíram no
rumo de casa. Umas conhecidas vieram se fingindo perguntar como estava a vida,
perguntaram por Branca, a irmã, enquanto ficavam de olho grelado, de cima a
baixo no homem de boa aparência ao seu lado.
Dias passados e Benício
foi ficando esquisito, de pouca conversa com dona Nicinha e com Branca. Era de
chegar em casa e pouco procurar as patroas. Cumpria o mandado e pouco dava na
vista. Largou a beber. Na semana seguinte chegou de noite do mercado cheirando
a aguardente e a fumo. Foi pra o quarto e arrumou as roupas e os poucos
pertences. Pela manhã, na hora de costume de encher os potes, ele não apareceu.
No meio do dia vieram avisar que um corpo de homem foi encontrado no Igaraçu e
que podia ser o dele. E era.
Demorou a ser retirado
da água. Alguns homens dali dos Tucuns e até da Ilha Grande se atreveram a
mergulhar no rodeio das canoas e das lanchas. Agulha, Zé Filinto, Domingo
Cabeção, seu Onofre, Peido de Ovo, seu Bagre. O porto ficou coalhado de gente
de tudo quanto foi lugar naquele de manhã. Mas Benício Potassa foi achado.
Estava com os pés amarrados, vestido como se fosse viajar ou ir pra missa. No
bolso da calça foi encontrado dinheiro. Muito dinheiro. Um terço e um
escapulário de São Bento. Tudo aquilo muito esquisito.
As irmãs Nicinha e Branca
foram chamadas em casa pra verem o corpo de Benício Potassa e providenciarem o
enterro. Os mergulhadores continuaram as buscas por mais alguma coisa, talvez
uma mala. E foi o que encontraram. Uma mala ruim feita de madeira, que quando
aberta, dentro estavam umas mudas de roupas, duas pedras grandes, um par de
sapatos caros e um cinturão. Tudo como fosse vestuário de um homem importante
da Parnaíba.
Quando o corpo de
Benício Potassa foi retirado da água e colocado na areia fofa da beira do rio
nos Tucuns, uma multidão se formou em volta. Uns lembrando o sujeito bom,
prestativo, trabalhador na casa de seu Doca Mariano e de dona Dadinha. Outros
lembrando o vendedor de mangas, cajus e pitombas e todo tipo de frutas no
Mercado Central. E mais outros, homens e mulheres, meio afastados, falavam da
vida do rapaz sonso e vindo de João Peres, agora afogado e que vivia amigado
com a filha do padrinho.
Pádua Marques, jornalista, escritor contista, membro do IHGGP e da Academia Parnaibana de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário