| Foto Jornal GGN |
DISSONÂNCIAS
NA FESTA(*)
Por Manuel Domingos Neto
Na emocionante encenação do povo subindo ao poder,
ninguém ligou para os lanceiros coloniais perfilados, com uniformes idealizados
pelo integralista Gustavo Barroso, formando um corredor, enquadrando o cortejo,
tipo garrote castrense.
A mulher negra e pobre, apondo a faixa
presidencial, parecia dizer: tua lança feriu os meus, mas não me intimidas!
Nos ministérios, discursos de lavar a alma de
quem amargou seis anos de implacável ofensiva contra a dignidade humana e a
honra nacional. Sílvio Almeida, Nísia Trindade, Flávio Dino, Luciana Santos,
Camilo Santana, Cida Gonçalves, Wellington Dias, Marina Silva... todos
alimentando a vontade de futuro promissor.
A composição heterogênea não esmaeceu a impressão
de um país que volta a sorrir. Os moderados Fernando Haddad e Simone Tebet mantiveram
o clima. Alckmin apontou a perspectiva do desenvolvimento e da
industrialização.
A esperança foi injetada na veia. Os
lutadores pela democracia lacrimejamos alegres.
A entrega da inteligência de Estado a um
militar... Trata-se de atividade indispensável à condução do Estado e à
sustentação do governo! O general escolhido trairá seus camaradas que, em “aproximações
sucessivas”, há mais de um século desbancam governantes?
Em matéria de dissonâncias, a mais cabreira ocorreu
na Defesa. O ministro apresentou-se como “representante” das corporações
armadas. Jogou às favas a soberania popular constitucionalmente assegurada. Naturalizou
movimentos criminosos diante dos quartéis, enalteceu seu antecessor (um general
que tentou melar as eleições) e garantiu a continuidade de orientações estratégicas
que não defendem o Brasil.
As solenidades de posse de José Múcio e do
novo comandante da Aeronáutica ignoraram acintosamente o comandante supremo das
Forças Armadas. Nenhum oficial pronunciou o nome de Lula. Enalteceram suas próprias
figuras e santificaram suas corporações.
O poder político continua sem perceber a incompatibilidade
entre a construção de um país democrático e soberano e as estruturas orgânicas
e funcionais do Estado, com destaque para seus instrumentos de força.
O poder político imagina que tais estruturas
se movem apenas em busca de boquinhas, de desígnios pequenos, da pura vontade
de tutelar. Considera, ingenuamente, que tudo estaria resolvido com o
afastamento de oficiais de cargos públicos e com “mudanças nos currículos” de
escolas militares.
Não ousam admitir que o Estado não representa
a vontade geral: foi concebido para manter a escravidão, o baronato patriarcal
e o enquadramento do país à uma ordem internacional imposta pela potência mais
poderosa.
As corporações armadas do Estado brasileiro nunca
o traíram. Sempre que o perceberam ameaçado, agiram com vigor. Sua missão
permanente foi e persiste sendo o sufocamento de rebeldias ou mesmo de mudanças
brandas. Daí os enfileirados não sentirem remorso com as atrocidades que praticaram.
Daí insistirem em efemérides que ressaltam conflitos entre os nacionais.
A preservação das estruturas militares
brasileiras tal como estão é incompatível com o combate à pobreza e ao racismo.
Sem juventude pobre e sem arrimo, sem negros inferiorizados, o sistema de
recrutamento, que preserva o feitio colonial, não resistiria. Quem abdicaria de
carreira promissora para prestar o serviço militar? Que empresário, médico ou
juiz gostaria de ver seu filho ouvindo gritos de sargentos e oficiais, faxinando
quartéis, atrasando sua vida acadêmica?
A liberdade e a dignidade da mulher são
incompatíveis com as corporações armadas que cultuam o legado colonial. Tal
como a carreira militar está estruturada, nenhum oficial se casaria com mulher
que rejeite viver na dependência do marido, um funcionário obrigado a uma vida
itinerante, sem chance de criar vínculos com a sociedade. Quando os militares
dizem que a esquerda quer destruir a família, exaltam a índole patriarcal e
criminalizam os modelos familiares que as mudanças sociais vão impondo.
A defesa da condição LGBTQIA+ é incompatível
com o castro mantido pelo Estado brasileiro: tumultuaria as regras de promoção
hierárquica. Gay assumido não tem vaga na carreira.
A política externa “ativa e altiva” também é
incompatível com os instrumentos de força do Estado brasileiro, sobretudo desde
que foram modernizadas, entre as duas guerras mundiais, pela França. Por que
uma potência imperialista modernizaria um aparato militar capaz de contrapor
seus desígnios? O modernidade então alcançada apenas serviu para o monopólio
interno da força, revelado inequivocamente em 1932, com a submissão dos
paulistas.
A modernização não serviu à Defesa Nacional. Por
maior e mais desenvolvido que seja, o Estado que depende de armas alheias não
passa de um protetorado. Essa é hoje a condição Alemanha, do Japão, do Reino
Unido...
Em termos de capacidade dissuasória, há dois
tipos de Estado: os que fabricam e vendem armas e os que não fabricam e compram
armas. Os primeiros, mandam, os demais fortalecem o mando dos primeiros. Ce n´est
pas, monsieur Macron?
Ocioso lembrar, um governo que decida comprar
aviões e barcos dos que desafiam Washington sentirá a mão pesada do Pentágono.
O mesmo quanto a qualquer parceria estratégica que amplie a capacidade de
dissuasão. Não há habilidade diplomática que drible esta contingência. Certo,
Celso Amorim?
O maior desafio de Lula é o exercício do
Comando Supremo de corporações armadas estruturalmente hostis à mudança social.
É compreensível, mas não é aceitável seu esforço de contemporização. Os
comandos militares, ficando por conta própria, as promessas explicitadas na
subida da rampa serão fátuas. A negra catadora Aline Sousa será ludibriada. Os
lanceiros coloniais vestidos pelo integralista Gustavo Barroso prevalecerão.
A expressão “tutela militar” precisa ser
compreendida em seu sentido mais profundo: trata-se, sobretudo, de impor
padrões sociais ao gosto do Estado que concebeu as fileiras para submeter o
povo.
Disso resulta que, ou o poder político molda
os instrumentos de força do Estado ou os quartéis, outorgando-se a condição de
pais da pátria, persistirão empenhados em moldar a sociedade.
Lula é de uma inteligência rara e de uma
sensibilidade política legendária. É líder inconteste dos brasileiros. Que
compreenda rapidamente ser impossível declinar da atribuição de comandante dos
generais.
(*) Crônica publicada no Jornal GGN (grupo Gente Nova) - São Paulo - SP
em 04/01/2023.
Professor Manoel Domingos Neto é membro da Academia Parnaibana de Letras, professor universitário, doutor em História, cientista político, tem várias obras publicadas entre as quais O Militar e a Civilização (2006)
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