domingo, 27 de outubro de 2019

CONTOS SOBRE SIMPLÍCIO DIAS


A morte beija a mão de nosso senhor Simplício Dias.
 Pádua Marques
Romancista, cronista, contista e jornalista

Foto Google

Corria um vento levantando folhas secas de cajueiro vindas do rumo do Macacal, do Buraco dos Guaribas e do Testa Branca naquele dia 17 de setembro. Simplício Dias ia morrer daqui a pouco sem muita gente por perto e sem a pompa reservada aos principais do Piauí. Pouca gente havia na rua Grande e lá embaixo no cais do Porto Salgado, mas se via na esquina e na entrada de sua casa de morada um movimento de entra e sai de gente da igreja e alguns poucos conhecidos. Era assim desde a véspera.
Pois na véspera pela manhã Elias veio lhe dizer que umas mulheres da vida queriam ver o benfeitor e lhe pedir a benção já no leito de morte. Dona Isabel Thomásia achou aquele pedido fora de sentido. Uma falta de respeito! Mas por insistência do criado acabou aceitando. Vieram umas seis, muito pias, silenciosas, cabeças cobertas por véus. Simplício até que podia ser perverso, mas nunca perseguiu as mulheres da vida lá embaixo no Porto Salgado e nos Tucuns. A casa há dias já estava vazia e silenciosa, aquele silêncio de casa onde acaba de sair um enterro.
Elias estava se sentindo só. De manhã cedo, olhando com cuidado seu senhor naquela cadeira, próximo da rede e de um penico, Simplício estava com as canelas finas terminando nos pés dentro de um chinelo de couro gasto saindo por baixo do chambre de tecido ruim, os olhos encovados, a cabeça de antes cabelos carapinhos e cor de cobre, agora estava ficando careca. O escravo de confiança lembrava ali perto dele os dias em que precisou ter coragem.
Quantas e quantas vezes a morte veio de tudo quanto era lado e de jeito, faca, pistola, espada. Simplício venceu todas elas, mas agora não tinha como escapulir. Ia morrer. Não levava nada desta vida. Nem o ouro, as pratarias, a louça de porcelana inglesa, as joias valiosas da mulher, das filhas e da igreja feita pelo pai Domingos e que os portugueses de Fidié roubaram um dia quando invadiram a Parnaíba e que depois foram devolvidas.  Voltou pouca coisa, não tudo. Os móveis, o cofre com os poucos tostões da antiga fortuna.
Morreu Simpilição! Simpilição morreu! Foi o que se ouviu no largo da igreja e na rua da casa de morada do dono da Parnaíba naquele meio de tarde. Um negro passou a gritar no rumo dos Tucuns e logo a notícia foi se espalhando pelos imensos caminhos de areia beirando o rio. Tão logo ficaram sabendo, muitos escravos, afilhados e agregados da casa da rua Grande vieram correndo em pranto de choro rezar na igreja do Rosário. Muita gente espantada com aquela notícia tomou as portas das casas humildes. Muita gente triste e muita gente alegre.  
Morreu Simpilição! No Porto Salgado, entre a gente das embarcações atracadas e nas calçadas de armazéns, de repente ficou mais parecendo a Sexta-feira da Paixão. Aquela gente sem nada pra fazer passou a ir pras portas das vendas e ficou bebendo aguardente, fumando, achando graça com a mão na boca e até fazendo pilhérias com o nome do morto. De noite por fim quando se soube de forma oficial da morte em toda a vila, de ponta a ponta, ninguém mais fez nada nos barcos.
Morreu o Simpilição! Se acabou o Simpilição da Parnaíba! E assim já no outro dia, antes de o sol andar quase no meio do céu indo morrer atrás das carnaubeiras de Ilha Grande de Santa Isabel, aquela gente toda veio pra o largo da casa de morada do governador da Parnaíba. Não puderam entrar, mas ficaram ali plantados de longe olhando o movimento antes da saída do corpo pra dentro da igreja. Uns falando das qualidades e da valentia dele como soldado. Outros lembrando passagens boas ou ruins, a fortuna, o luxo exagerado em meio de tanta gente necessitada, os castigos que dava aos escravos de sua casa, as perseguições políticas.
Os mais de dentro, contando políticos e comerciantes da praça e próximos de sua casa, lembravam a caridade com uns poucos, a lealdade e depois a rebeldia com o imperador dom Pedro I e o tino de comerciante, mesmo tendo perdido dinheiro com a insistência de vender carne seca pra Europa quando lá se consumia há tempos linguiça e salsichas da Alemanha, o sumiço da fortuna com um luxo fora de propósito e as mortes do pai Domingos e do irmão Raimundo e o vazio que deixava por não ter sucessores homens na família.
Mas no meio daqueles que se apinhavam na frente dos armazéns, indo no sentido do porto e da alfândega e lá mais longe, havia aqueles que o renegavam e até desejavam que sua alma estivesse àquela hora no inferno. Morreu Simpilição! Morreu, morreu Simpilição da Parnaíba! A família pediu que as cerimônias de encomendação do corpo se dessem mesmo em casa, contrariando o senado da Câmara, que queria que fosse dentro da igreja com toda a pompa a que ele tinha direito.
Mas dona Isabel Tomásia e os outros de casa no íntimo temiam de que poderia haver manifestações exaltadas. A milícia isolou toda a parte de baixo e do lado de cima.  E por fim por volta do meio da manhã saiu quase em que se percebesse o cortejo em direção à igreja. Pouco mais de dez pessoas, contando os carregadores, seis negros vestidos com roupas brancas, calçados e asseados. Atrás do caixão vinham a viúva, a filha, os outros parentes e as autoridades.
O povo no largo da igreja do Rosário e no da casa de morada, rua Grande e arredores pouco teve tempo de ver aquela procissão. Entraram na igreja e as portas foram fechadas. A milícia pouco teve trabalho em deixar afastados os curiosos. No porto a movimentação estava suspensa por ordem do capitão Felismino Botelho, do brigue Cidade de São Luiz, o comandante mais antigo das embarcações atracadas. E assim dentro de pouco tempo a vida e os feitos do senhor da Parnaíba estavam debaixo da terra.




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