Educadores canavieiros
Por Altevir Esteves
Algumas
crianças, entre 7 e 12 anos, caminhavam entre mangueiras, cajueiros,
carnaubeiras e a vasta plantação de cana de açúcar, que ao invés de ser matéria
prima para o adoçante moderno, virava rapadura e cachaça nos velhos engenhos e
alambiques. Um garoto colheu uma cana com seu cutelo que sempre trazia preso à
cintura e antes de provar o doce de seu suco, foi desafiado por outro que
trazia uma manga madura “dominada” nos pés como se fosse uma bola de futebol.
Recebeu um drible e desistiu de brincar. José, o menino mais velho, se
aproximou de uma touceira de carnaúba e ali recolheu um talo seco, enorme, com
larga folha e uma infinidade de espinhos em forma de garras de cada lado do
pecíolo. Puxando de uma peixeira de dez polegadas, decepou os espinhos, abriu
um talho de cada lado da bainha do talo, forçou a parte cortada sem separar do
corpo da folha e ficou satisfeito com as duas orelhas que fizera. Na parte de
contato da bainha com o tronco da palmeira, fez vários picotes, formando dentes
enormes. No segmento curvo deu um corte por baixo fazendo com que a bainha
cedesse, sendo forçada para baixo e mais de encontro com o talo. Com uma imbira
tirada de uma bananeira fez um cabresto, prendeu acima dos “dentes” da bainha e
puxou para cima. Passou seu brinquedo entre as pernas, segurou firme nas rédeas
e com o resto das tiras açoitou o seu cavalo batendo no rabo formado pelas
palhas. Deu um grito de vaqueiro e ameaçou:
·
Quem chegar por último é a mulher do padre! - e passou pelos
colegas em disparada.
·
Nos últimos
festejos religiosos da cidade, quando grandes barracas de brinquedos trazidos
da capital pelos ambulantes, aqueles meninos não tiveram vez, sequer, de ficar
por perto, admirando os carros de plástico, as bolas coloridas que ficavam mais
bonitas ainda sob a luz das lâmpadas elétricas que em suas casas não havia.
Quando se aproximavam das bancas com suas chinelas remendadas, camisa sem
botões e calções sujos, eram enxotados sob desconfiança de que fossem furtar
brinquedos. Ficavam de longe vendo a roleta girar e apostando, em seus
pensamentos, em qual bicho o ponteiro iria parar.
Mas na roça,
não. Podiam brincar do que quisessem. Havia os jatobás, cujo fruto se
assemelhava com um robusto boi e mesmo que tivesse apenas um talo firme,
imagina serem chifres. Ajeitavam dezenas deles num cercado de pedras, num
grande e rico curral. O velho carro de mão, que do original restava somente a
roda de ferro e tudo o mais era de madeira tosca, era um belo transporte no
qual eram levados de um lado para outro, em rodízio para que todos pudessem ser
motoristas e passageiros. Para transportar água, penduravam as pesadas latas no
carro de ombro, formado por duas rodas de madeira unidas por um eixo sobre o
qual uma forquilha se apoiava de um lado e do outro a clavícula da criança, que
empurrava o que era para ser um brinquedo. Mas logo que tirava o peso dava uma
meia volta, um cavalo de pau, com as rodas travadas andando de lado.
Sensação!
·
Larguem de brincadeira! Você, vá meter bagaço na fornalha! Você,
vá buscar lenha pro almoço!
·
Nova
interrupção. Logo dariam um jeito. E um bagaço seco, fazendo-se juntar as duas
extremidades, formando uma roda, era atirado na fornalha, girando até as chamas
lhe devorarem. E no alto do galho seco uma rolinha montava o seu ninho, quando
uma pedra atirada de uma atiradeira, lhe arrancava penas e era obrigada a alçar
vôo desesperado.
·
Quase! Lá se foi minha janta!
·
O cavalo de
carnaúba estava guardado, bem guardado. Estava no canto do engenho, outro no
alto da árvore, ainda verde, outro seco esperando ser colhido e todos nos
pensamentos das crianças. Não só naqueles dias, mas por todos os dias que
teriam pela frente. Eram neles que haviam montado nas “Noites dos
Vaqueiros”, a grande festa, quando de dois em dois as crianças disputavam
corrida, valendo um sorriso, uma manga madura tirada do alto do pé ou a
substituição compulsória de um serviço mais difícil.
O Cavalinho de
carnaubeira ficou guardado por anos a fio, até o dia que o menino José ficou
grande, burlou o bagaço, a cana, a enxada, a roça. Enganou a fome, a sujeira, a
seca, a sua sina. Foi embora da cidade, conheceu terras longínquas, países,
profissões, gente, muita gente. E quando, ainda não cansado de tanto trabalhar
e aprender, conheceu aquelas pessoas que ensinam a brincar.
Ensinar a
brincar? José não precisava. Já faz muito tempo que aprendeu a dar novos
significados a tudo o que caía em suas mãos. Cortando, dobrando, amassando,
amarrando, valorando. De pedras irregulares fazia castelos, da água das bicas
fazia barragens e açudes, das sandálias de borracha fazia rodas pros seus
carros e as embalagens de cigarros eram transformadas em cédulas com as quais
comprava o que não sabia fazer. Passou pela vida brincando com riscos e
rabiscos nos seus cadernos, desenhando casas e cavalos, sonhando que voava
altaneiro para em seguida pousar num campo e ali correr com o seu cavalinho de
carnaubeira.
A professora de
ensinar a brincar disse que cavalo de pau não é brinquedo, é objeto. Que objeto
não gera movimento. Só o dela, José acredita, que deve ser inerte, com bolor e
teias de aranha prendendo suas patas, porque o seu cavalinho, o seu brinquedo,
é saltitante, trotador, corredor. O cavalinho de José é dinâmico, não perde uma
parelha e como o folclórico Cavalo Maracara, não tropeça e não se cansa,
viajando sempre, por anos a fio, em noites claras e escuras.
José se livrou
da Trama Doce-Amarga, conforme relatado por Maurício Roberto da Silva, mas
quando achou que “venceu na vida”, viu-se novamente escravizado, com
peias severas, não nos pés, mas na sua imaginação.
Os canavieiros
proprietários das terras onde as crianças tentavam dar sentido às suas vidas no
triste viver escravizado, venderam suas terras, fecharam suas usinas, engenhos
e alambiques e foram contar suas histórias em outras paragens. Agora, ao invés
de explorar crianças e roubar-lhe o tempo, teimam em ditar o que se deve fazer
com os brinquedos, com os sonhos, com a criatividade infantil que deve
permanecer nos adultos brincantes. Teimam em ser canavieiros, donos da
vida de meninos, proprietários dos sonhos alheios. Orgulhosos, como se
tivessem, pelo menos, um cavalinho de carnaubeira para aprender a brincar.
E agora, José?
A pergunta eterna de Drumond ressoa ininterrupta, ecoando não nas serras, mas
no tempo. A festa da alegria acabou, a noite e o dia esfriaram e o riso
que veio, também sumiu. Mas o cavalinho de carnaubeira teima em não ser o
Boi Pitanga, cujo lugar é eterno lá na canga.
A criança, o homem. Esse homem não será igual aos outros, resiliência.
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