domingo, 15 de agosto de 2021

Educadores canavieiros

 Educadores canavieiros

 Por Altevir Esteves


 


        Algumas crianças, entre 7 e 12 anos, caminhavam entre mangueiras, cajueiros, carnaubeiras e a vasta plantação de cana de açúcar, que ao invés de ser matéria prima para o adoçante moderno, virava rapadura e cachaça nos velhos engenhos e alambiques. Um garoto colheu uma cana com seu cutelo que sempre trazia preso à cintura e antes de provar o doce de seu suco, foi desafiado por outro que trazia uma manga madura “dominada” nos pés como se fosse uma bola de futebol. Recebeu um drible e desistiu de brincar. José, o menino mais velho, se aproximou de uma touceira de carnaúba e ali recolheu um talo seco, enorme, com larga folha e uma infinidade de espinhos em forma de garras de cada lado do pecíolo. Puxando de uma peixeira de dez polegadas, decepou os espinhos, abriu um talho de cada lado da bainha do talo, forçou a parte cortada sem separar do corpo da folha e ficou satisfeito com as duas orelhas que fizera. Na parte de contato da bainha com o tronco da palmeira, fez vários picotes, formando dentes enormes. No segmento curvo deu um corte por baixo fazendo com que a bainha cedesse, sendo forçada para baixo e mais de encontro com o talo. Com uma imbira tirada de uma bananeira fez um cabresto, prendeu acima dos “dentes” da bainha e puxou para cima. Passou seu brinquedo entre as pernas, segurou firme nas rédeas e com o resto das tiras açoitou o seu cavalo batendo no rabo formado pelas palhas. Deu um grito de vaqueiro e ameaçou:

 

·          

Quem chegar por último é a mulher do padre! - e passou pelos colegas em disparada.

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        Nos últimos festejos religiosos da cidade, quando grandes barracas de brinquedos trazidos da capital pelos ambulantes, aqueles meninos não tiveram vez, sequer, de ficar por perto, admirando os carros de plástico, as bolas coloridas que ficavam mais bonitas ainda sob a luz das lâmpadas elétricas que em suas casas não havia. Quando se aproximavam das bancas com suas chinelas remendadas, camisa sem botões e calções sujos, eram enxotados sob desconfiança de que fossem furtar brinquedos.  Ficavam de longe vendo a roleta girar e apostando, em seus pensamentos, em qual bicho o ponteiro iria parar.

 

        Mas na roça, não. Podiam brincar do que quisessem. Havia os jatobás, cujo fruto se assemelhava com um robusto boi e mesmo que tivesse apenas um talo firme, imagina serem chifres. Ajeitavam dezenas deles num cercado de pedras, num grande e rico curral. O velho carro de mão, que do original restava somente a roda de ferro e tudo o mais era de madeira tosca, era um belo transporte no qual eram levados de um lado para outro, em rodízio para que todos pudessem ser motoristas e passageiros. Para transportar água, penduravam as pesadas latas no carro de ombro, formado por duas rodas de madeira unidas por um eixo sobre o qual uma forquilha se apoiava de um lado e do outro a clavícula da criança, que empurrava o que era para ser um brinquedo. Mas logo que tirava o peso dava uma meia volta, um cavalo de pau, com as rodas travadas andando de lado. Sensação! 

 

·          

Larguem de brincadeira! Você, vá meter bagaço na fornalha! Você, vá buscar lenha pro almoço!

·          

 

        Nova interrupção. Logo dariam um jeito. E um bagaço seco, fazendo-se juntar as duas extremidades, formando uma roda, era atirado na fornalha, girando até as chamas lhe devorarem. E no alto do galho seco uma rolinha montava o seu ninho, quando uma pedra atirada de uma atiradeira, lhe arrancava penas e era obrigada a alçar vôo desesperado. 

 

·          

Quase! Lá se foi minha janta! 

·          

 

        O cavalo de carnaúba estava guardado, bem guardado. Estava no canto do engenho, outro no alto da árvore, ainda verde, outro seco esperando ser colhido e todos nos pensamentos das crianças. Não só naqueles dias, mas por todos os dias que teriam pela frente.  Eram neles que haviam montado nas “Noites dos Vaqueiros”, a grande festa, quando de dois em dois as crianças disputavam corrida, valendo um sorriso, uma manga madura tirada do alto do pé ou a substituição compulsória de um serviço mais difícil. 

 

        O Cavalinho de carnaubeira ficou guardado por anos a fio, até o dia que o menino José ficou grande, burlou o bagaço, a cana, a enxada, a roça. Enganou a fome, a sujeira, a seca, a sua sina. Foi embora da cidade, conheceu terras longínquas, países, profissões, gente, muita gente. E quando, ainda não cansado de tanto trabalhar e aprender, conheceu aquelas pessoas que ensinam a brincar. 

 

        Ensinar a brincar? José não precisava. Já faz muito tempo que aprendeu a dar novos significados a tudo o que caía em suas mãos. Cortando, dobrando, amassando, amarrando, valorando. De pedras irregulares fazia castelos, da água das bicas fazia barragens e açudes, das sandálias de borracha fazia rodas pros seus carros e as embalagens de cigarros eram transformadas em cédulas com as quais comprava o que não sabia fazer. Passou pela vida brincando com riscos e rabiscos nos seus cadernos, desenhando casas e cavalos, sonhando que voava altaneiro para em seguida pousar num campo e ali correr com o seu cavalinho de carnaubeira.

 

        A professora de ensinar a brincar disse que cavalo de pau não é brinquedo, é objeto. Que objeto não gera movimento. Só o dela, José acredita, que deve ser inerte, com bolor e teias de aranha prendendo suas patas, porque o seu cavalinho, o seu brinquedo, é saltitante, trotador, corredor. O cavalinho de José é dinâmico, não perde uma parelha e como o folclórico Cavalo Maracara, não tropeça e não se cansa, viajando sempre, por anos a fio, em noites claras e escuras.  

 

        José se livrou da Trama Doce-Amarga, conforme relatado por Maurício Roberto da Silva, mas quando  achou que “venceu na vida”, viu-se novamente escravizado, com peias severas, não nos pés, mas na sua imaginação.  

 

        Os canavieiros proprietários das terras onde as crianças tentavam dar sentido às suas vidas no triste viver escravizado, venderam suas terras, fecharam suas usinas, engenhos e alambiques e foram contar suas histórias em outras paragens. Agora, ao invés de explorar crianças e roubar-lhe o tempo, teimam em ditar o que se deve fazer com os brinquedos, com os sonhos, com a criatividade infantil que deve permanecer nos adultos brincantes.  Teimam em ser canavieiros, donos da vida de meninos, proprietários dos sonhos alheios. Orgulhosos, como se tivessem, pelo menos, um cavalinho de carnaubeira para aprender a brincar.

 

        E agora, José? A pergunta eterna de Drumond ressoa ininterrupta, ecoando não nas serras, mas no tempo. A festa da  alegria acabou, a noite e o dia esfriaram e o riso que veio, também sumiu.  Mas o cavalinho de carnaubeira teima em não ser o Boi Pitanga, cujo lugar é eterno lá na canga.

 


 

Altevir Esteves - escritor, poeta e atleta. É membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira nº 14.  

NOTA DO AUTOR

O problema levantado é baseado num livro denúncia: Trama Doce-Amarga, de Silva Maurício Roberto, relatando o drama das crianças que trabalham nos canaviais pernambucanos e que não tem direito a brinquedos modernos. A gente aprende que a criança tem que ter hora pra brincar e ela deve fazer de qualquer objeto um brinquedo, mesmo que não tenha sido para feito para tal ou que, mesmo sendo um brinquedo, a criança encontra outra forma que não aquela que os construtores pensaram.


Um comentário:

  1. A criança, o homem. Esse homem não será igual aos outros, resiliência.

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