A canja da vingança
Por *Pádua Marques
Agora era a vez. A mágoa guardada fazia anos no peito de Guilhermina saía pra causar sofrimento a Simplício Dias da Silva, doente, tomado pela caduquice, sem defesa, andando pra cima e pra baixo pelas mãos dos outros. Assim era a vida. Haveria ele de pagar ali e agora em cima da terra e ardendo de febre, tossindo e se obrando todo, toda a humilhação e o sofrimento causados ao seu filho Moisés, à época um menino de pouca idade, quase cinco anos, quando o senhor e patrão, entrando um dia na cozinha encontrou a pobre negra dando de comer na boca do filho e ordenou que nunca mais queria ver aquilo. Ordenou que colocasse mais sal na canja que estava sendo servida. Pedindo clemência e por tudo quanto era santo, chorando, a cozinheira obedeceu com medo de que pudesse fazer ainda um mal maior ao menino e de que ela fosse açoitada por Elias, o fiel pra qualquer situação dentro da casa de Simplício Dias da Silva na vila da Parnaíba. Moisés vendo aquele homem na frente de sua mãe, falando alto, teve que engolir a canja salgada. Seus olhos marejavam. Depois, a mãe humilhada e com medo o colocou lá embaixo, sentado num batente que dava pra o grande quintal e indo em seguida, já só na cozinha, levar um caneco de água. Moisés ficou mais aliviado e bebendo aos
goles, rápido, ficou chorando sozinho enquanto Guilhermina voltava ao serviço e com vistas a não dar ainda mais confusão entre Simplício Dias, Elias e até dona Isabel Tomásia. Sua senhora era muito humilhada pelo marido porque não ostentava certos gostos e vaidades vindas de fora. Pouco saía de casa, não pegava numa moeda que fosse, tanto ela quanto a filha Carolina.
goles, rápido, ficou chorando sozinho enquanto Guilhermina voltava ao serviço e com vistas a não dar ainda mais confusão entre Simplício Dias, Elias e até dona Isabel Tomásia. Sua senhora era muito humilhada pelo marido porque não ostentava certos gostos e vaidades vindas de fora. Pouco saía de casa, não pegava numa moeda que fosse, tanto ela quanto a filha Carolina.
Guilhermina tinha medo de que Simplício Dias voltasse e mandasse Elias os açoitar. Simplício Dias da Silva vinha de uma situação difícil nos negócios naquele ano de 1808 com a carne salgada e os estaleiros na Ilha Grande de Santa Isabel e na Barra do Longá. Perdia dinheiro com o mercado na Europa e ainda por cima duas embarcações encomendadas por gente de São Luís no Maranhão, davam prejuízos a olhos vistos. A escrava Guilhermina guardou aquilo por muitos e muitos anos. Da mesma forma como foram sendo guardadas as moedas de vinténs e mil réis, mandadas de vez em quando pela única irmã, Justina, mais velha e escrava de cozinha da casa de um desembargador em São Luís no Maranhão. Era dinheiro guardado e bem guardado e com ele um dia sonhava mais lá na frente comprar uma casinha nos Campos, Macacal ou Buraco dos Guaribas e com o filho Moisés poder viver e morrer sossegada.
A vingança de Guilhermina agora vinha aos poucos. Num dia colocava mais sal na canja que seria servida ao coronel Simplício Dias da Silva. Noutro dia era pimenta do reino. Mais outra vez era menos sal. Mais pimenta malagueta. Azeite, pra fazer com que se obrasse todo na rede. Era o jeito que tinha de ir aos poucos se vingando pelo que passou ela e o filho e curando uma dor antiga. Elias pouco se importava de provar a canja do coronel. Confiava em Guilhermina e dona Isabel Tomásia andava agora muito ocupada com suas rezas e as roupas de cama e de mesa. As negras de casa iam pela manhã com enormes trouxas descendo no rumo do cais lavar essa roupa, pra os lados de São José e só voltavam depois do sol estar passando do meio do céu, quando as embarcações apitavam anunciando chegada ou partida do porto Salgado.
Dona Isabel agora era de dar atenção às poucas visitas ao coronel e marido no fundo de uma rede, a receber dos comerciantes mais chegados na praça da rua Grande alguma ajuda, um médico vindo do Maranhão decretado ver como estava o antes valente e poderoso governador da vila da Parnaíba. Guilhermina entregava o prato de canja nas mãos de Elias. Antes fingia assoprar e Elias, na confiança de que tudo estava bem, ia levando as colheradas na boca desdentada do patrão e senhor. O velho Simplício Dias da Silva até que fazia beiço, igual menino pequeno quando toma remédio amargo. Elias assoprava e assim o doente acabava engolindo. Era um sofrimento pra os dois, o fiel escravo e seu senhor naquela hora de refeição! Vez por outra, dada a quantidade de pimenta ou de sal, o coronel lacrimejava, tossia, chorava. Dona Isabel Tomásia vinha correndo ver o que estava acontecendo. Depois de muita paciência Simplício Dias da Silva acabava engolindo a canja. Guilhermina lá na cozinha ficava esperando que Elias terminasse o serviço. Depois vinha com um pano molhado pra limpar a boca e o queixo do coronel.
Vinha, fazia seu serviço, olhava bem pra ele e do jeito que havia chegado silenciosa e obediente, voltava pra cozinha. Terminada a refeição da noite Elias levava o coronel pra rede ali perto. Pouco tempo e mais um bocado Simplício Dias da Silva havia pegado no sono. A vida da vila da Parnaíba, com seu comércio, seu porto Salgado, seus negros e vagabundos, as vendedoras de frutas e de mariscos vindos dos Morros da Mariana na Ilha de Santa Isabel. Mais lá embaixo no Cheira Mijo e ali na Coroa e Cantagalo, estavam esperando a cada dia o desfecho da morte do homem mais rico da Parnaíba.
Mas agora os navios e as embarcações menores rareavam. A antes casa mais vista e próximo da rua Grande, que noutros tempos hospedou gente importante do Rio de Janeiro, da França, Portugal e Inglaterra, que era conhecida pela louça e os pratos de porcelana, que foi motivo de intrigas e cobiça de muitos dentro e fora da capitania do Piauí, estava mais silenciosa do que nunca. Na sala de jantar, agora sem a presença do dono, era lugar apenas de dona Isabel Tomásia ou da filha Carolina.
Simplício Dias da Silva agora ficava encolhido no fundo de uma rede no andar do meio, tendo Elias lhe abanando devido ao forte calor de setembro. E mais na boca da noite quando o centro da vila da Parnaíba ia ficando silencioso, a escuridão pra os lados do porto Salgado era quebrada aqui e ali pelas lanternas das embarcações e do lado da rua Grande por alguma janela aberta denunciando um lampião ou vela acesa, Guilhermina estava ainda na cozinha preparando a canja ou ainda um chá de erva cidreira ou de capim limão, que logo seriam trazidos pra o coronel doente.
Doutor José Cândido de Deus vinha de vez em quando e naquela boca de noite veio ver o estado de saúde do ilustre coronel. Tentou falar com ele, dar ânimo, puxar por lembranças. Em vão. Simplício já não queria viver, se entregava à morte sem resistência, caduco, desdentado, cabelos raros, vestido com um chambre ordinário, os olhos encovados.
O médico recomendou que ele fosse levado pra São Luís ou até mesmo pra Europa, onde a medicina estava muito adiantada, onde havia mais recursos. Guilhermina preparou a canja como de costume. Não colocou nem sal, nem pimenta do reino ou óleo. Mas antes de entregar o prato e a colher pra Elias, deu as costas, de forma a não ser vista, e cuspiu dentro.
*Jornalista, escritor, cronista
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