segunda-feira, 26 de agosto de 2019

O IMAGINÁRIO DE UM COSMOPOLITA

Diego Mendes Sousa(*)

Sou discípulo da antropóloga Andréa Martini. Ouvi dela, palavras, e sobretudo, dessa audição, construí imagens. Dentre as palavras, calhei às expressões a originalidade do seu canto: riqueza, natureza, experiência, vida, sabedoria, casa, ribeirinhos, indígenas, parteiras, rezadeiras, cultura, enfim, elementos associados aos conhecimentos tradicionais.
Cultura abriga todos os aspectos humanos e imaginários (o não figurado, inclusive), bem como as manifestações através da pintura, da música, da literatura, etc. Fui a alinhavar o diálogo entre a percepção e a memória.
Neste mesmo instante, outros elementos apresentaram desenhos em minha mente, que abraçavam também os saberes tradicionais: rios, futuro, estrela, sapo, arquitetura (organização de grupos), dentre outras coisas.
Discuti comigo mesmo sobre o ser e a emissão vasta da oralidade. Internalizei os relatos do Roxo, típico nativo da região do Vale do Juruá, no Estado do Acre, e extraí algumas joias do seu relato arraigado de força rudimentar: intimidade comigo (dualidade inaceitável para os linguistas, porém de uma verdade avassaladora); troca; índio não é ninguém; consciência; crença; remédios da floresta; tudo é ciência. Passei a não duvidar da sabedoria (e como sei que ela existe! Pois a poesia que mora em mim é uma mina colapsada por dentro).
Fiz reflexões sobre cultura e evolução. Pensei em valoração, usufruto, utilização anímica das coisas do mundo. Vi inovação nas palavras do Roxo.
Andréa Martini falou sobre os festivais dos índios (e o seu folclore) e sobre o novo momento com as vivências em terras indígenas.
Guardei um provérbio interessante: existe mais olho na água do que cabelo na terra. Desconhecia essa máxima. Além de outra: dar comida às bananas, como sinônimo de merda.
De tudo ecoou uma geografia, que hoje habito entusiasmado: megadiversidade. Os indígenas se comprometem a prestar serviços ambientais imensuráveis.
Andréa Martini comentou sobre as suas andanças com os seringueiros do Igarapé São João, na Foz do Breu, nos rincões do exótico Acre, nos anos de 1990. E fui coletando mais imagens: os velhos dormem pouco; nadar nadando; chá de pau de quati, que promove a ereção masculina por dias a fio!
Ironicamente, gostei dos textos do padre Constantin Tastevin. Sociologia e memória entrelaçadas. Li sobre Correrias de Caboclo, sobre os povos Jaminawa, os Katukina, os Shanenawa...
Os Madija encantam-me deveras. São adeptos do xamanismo, mexem com plantas, sapientes. Existe poesia nisso, mas reservarei o tema para o futuro da minha linguagem.
Li no livro da Andréa Martini, “Tecendo Limites no Alto Rio Juruá”: moça que vai ao mato, sozinha, quer pitxa! Achei o máximo esse dito popular.
A professora Andréa Martini fez uma viagem sobre os mitos indígenas e as suas sensibilidades. Pura encantaria. O mito como fundamento. Pajelanças! E a relação com a natureza infinita. Ayahuasca, sananga, kambô, caiçuma, mabesh...
Apurei sobre cobras e onças e fiquei espantado! As jiboias possuem nomes. Os espíritos indígenas têm voz musical e suave. O ritual é uma espécie de terra firme, maná.
Pensei na palavra bugre, termo depreciativo, violento.
Até ontem, os índios, para mim, eram bugres. Depois vi a autenticidade, fiquei junto.
Os rios da Amazônia são grandes cobras, ressaltou a minha musa Altair, cobras d’água, jiboias, sucuris, su-cu-ri. Tive medo.
Por um momento, vi-me subindo o rio Envira (ou qualquer largo rio amazônico) e quanto mistério prendi no abismo do meu imaginário de um ser cosmopolita?
Os povos Pano têm obsessão por cobras, enquanto para os Arawá, a onça é a dona de todos.
A cobra é o símbolo do conhecimento. Ela que se esconde, obscurecida. Cobras são transcendência e sabedoria. Onça, uma voragem na mata!
Vazou o canto do Xamã na imensa floresta, rapé, piripiri.
Esse espírito, yuxin e suas sombras. Resolvi mandar o negativo embora. Foram embora mesmo na feitiçaria! E levaram macaxeira insossa, mingau fino de milho, sem ingerir água. Limitarei no tempo o poder dos legítimos barulhos da Amazônia.

CANÇÃO DO FIO AO PAVIO

Poesia,

cicatriz
de uma hóspeda
doidivanas.

Poema,

sangria
de uma invasora
despida.

Poeta,

operador
de uma desobediência
inacabada.
Musa,

febre
de uma moléstia
incurável.
Alma,

casa
de uma dor
inebriada.

Terra,

marejo
de um coração
pupilo.

Tempo,
o império
de um sonho
falido.

Poema de Diego Mendes Sousa (*)  Candidato à cadeira 27 da Academia Parnaibana de Letras que tem como patrono Ovídio Saraiva.

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