Por Pádua Marques (*) |
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Simplício Dias foi até a mesa e depois de se sentar e pedir que o visitante fizesse o mesmo passou a ler as duas cartas. A primeira, do príncipe dom Pedro, solicitava todo o apoio possível e impossível ao cientista Karl Friederich von Martius, ali à sua frente. A segunda carta, do governador Baltazar de Sousa Botelho de Vasconcelos, endossando o pedido de sua alteza no Rio de Janeiro. Aquela carta real foi motivo de grande contentamento. Em suas mãos uma carta escrita pelo filho de dom João e que seria guardada com todo o cuidado, igual um troféu!
Karl Frederich von Martius era um alemão de pouco mais de vinte e menos de trinta anos, de boa estatura, cabelos castanhos acobreados, de rosto duro e áspero, castigado pelo sol. Veio ao Brasil há um ano na comitiva da princesa Leopoldina e sua intenção era fazer grandes estudos sobre a fauna, flora e a mineralogia da colônia mais próspera de Portugal. Simplício Dias chamou um criado e ordenou que a visita fosse acomodada num dos quartos do térreo da casa da rua Grande, mas antes providenciasse um banho.
Pelo aspecto de von Martius era patente que estivesse há dias ou meses sem se molhar. No almoço farto, coisa rara e reservada às poucas visitas, o cientista adiantou a Simplício e dona Isabel, que ficaria na vila da Parnaíba coisa de uma semana, quando muito. Tempo suficiente pra conhecer a terra, a gente, os animais e as plantas e onde colheria amostras de insetos pra suas pesquisas antes de tomar o rumo de Tutoia do Maranhão e indo até o Pará naquele ano de 1818.
No dia seguinte e na companhia de um negro de seus trinta anos, de nome Belarmino, Karl Frederich von Martius tomou uma canoa pequena e foi ter do outro lado, na Ilha Grande de Santa Isabel. Logo na entrada se encantou com tudo o que viu. A imensa quantidade de carnaubeiras, os pântanos e a mata rala, os passarinhos, os camaleões, calangos e algumas borboletas e catirinas. O negro armado com uma espingarda ia de longe vendo tudo. Vez por outra e só quando perguntado, respondia sobre esse ou aquele animal, planta ou inseto.
Karl Frederich von Martius ia entrando de mata a dentro da Ilha Grande de Santa Isabel e se admirando com o que via e ouvia. Belarmino ficava olhando aquela arrumação e às vezes até queria achar graça, mas nem era besta. Em casa, Simplício Dias ainda estava encasquetado com a carta de dom Pedro. Lia e relia não acreditando que aquela carta era pra ele. Finalmente foi até o cofre e guardou as duas cartas entre outros papeis, moedas e joias da família.
No porto lá embaixo o movimento era o de sempre. Navios e canoas cobertas de palha desembarcando mercadorias vindas do Maranhão pra os armazéns lá em cima na rua Grande e nas próximas. Os negros embarcadiços e escravos pelo efeito do sol quente mais pareciam feitos de louça, tamanho o brilho nos lombros. No final do dia iriam pra suas casas com o pouco ganho ou gastar logo mais nos botequins com aguardente.
No fim do dia o negro Belarmino e Karl von Martius, que Simplício Dias e os de casa passaram a chamar de seu Vomartim, voltaram pra casa. À noite, depois de fechadas as lojas e os armazéns e findo o trabalho no porto lá embaixo, o silêncio tomava de conta daquela região da vila da Parnaíba. Simplício e a mulher dona Isabel convidavam Karl von Martius pra sala de visitas e ali ficavam a conversar sobre o Rio de Janeiro, o príncipe dom Pedro, que muito gostaria de conhecer, a princesa Leopoldina, enfim a realeza tão rica, poderosa e distante.
Simplício convidou o alemão pra que fizesse uma visita à imponente igreja de Nossa Senhora da Graça, construída por seu pai Domingos. Vomartin foi e até que tomou gosto pela construção, as ricas imagens, as colunas, o altar. Mas chamou a atenção pra o pórtico em mármore e tomando a forma de uma abóbada de mesquita muçulmana e a rosácea muito bem feita. Já se passavam cinco dias e as pesquisas continuavam. Agora era a atenção voltada pra os insetos. E inseto era o que não faltava toda noite, além do calor de agosto. Mas Simplício garantiu que dentro de mais umas semanas começariam os ventos de setembro vindos do Testa Branca.
Os dois, Karl e Belarmino, continuavam a seguir todas as manhãs tomando a canoa e desembarcando na Ilha Grande de Santa Isabel. O alemão até que havia criado simpatia pelo diabo do negro. Com ele ia aprendendo muita coisa, nomes de plantas, insetos, bichos pequenos. Mas pouco ensinou ao escravo e protetor. Um dia, foram pra mais dentro da ilha e lá descobriram um formigueiro. Ao fazer umas escavações Karl Frederich von Martius não tomou cuidado e quando se deu conta estava todo coberto por formigas de fogo. Se vendo de dor e já todo encalombado saiu gritava pedindo socorro.
Belarmino quando viu o alemão naquele estado se pôs a correr. Mas temendo com o que pudesse lhe acontecer acabou voltando e depois de tirar a camisa foi batendo nas costas, nos braços, pernas, cabeça e tudo o mais do cientista. A valência foi que as formigas de fogo não atingiram os olhos. Até que deu vontade de achar graça pelo que estava acontecendo, mas engoliu a gaitada fora de hora. Na volta pra casa e todo já ardendo de febre Karl Frederich von Martius foi direto pra uma tina de água morna e salgada. Foi o bastante pra encerrar as pesquisas na Parnaíba e dentro de mais um dia ir se embora no rumo de Tutoia.
(*)Pádua Marques é jornalista e escritor. Membro da Academia Parnaibana de Letras e ocupa a cadeira de nº 24.
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