A negrinha e a vaca.
Pádua Marques (*)
Passava pouco mais da boca da noite quando Elias veio contar pra Simplício Dias que ouviu pela boca de gente na rua e perto do porto Salgado que Sebastião Matias, um negro encarregado de curral no Buraco dos Guaribas havia dado fim numa vaca próximo do Testa Branca, de propriedade de dona Isabel Tomásia. Foi o bastante pra que o coronel mandasse ver Salviano e Antão pra irem lá naquele fim de mundo e caçassem o ladrão, fosse de que forma fosse.
Elias iria junto pra não deixar ninguém se assustar, causar espanto de ver gente estranha chegando e tentar fuga! Salviano e Antão eram dois negros da mesma idade, uns vinte pra vinte e cinco anos, trazidos do Maranhão, bons de faca e cacete e que viviam escondidos no fundo da casa grande e sempre chamados a fazer coisa que não prestava. Coisa envolvendo vingança, brigas de famílias, corretivos pra assustar, cobrança de dívidas ou até tocarem fogo nas casas e comércios de gente que se metia a querer enfrentar o coronel.
Sebastião Matias havia dado fim na vaca, animal de umas dez arrobas, de pouca carne embaixo dos couros e que nem dava mais uma gota de leite. Mas era de propriedade de dona Isabel Tomásia. O negro roubou a vaca e foi vender longe, muito longe, depois de dois dias de marcha por dentro do mato, em Granja, no Ceará. Agora como ainda não tinha voltado e certamente com medo de um castigo, estava escondido no mato. A ordem de Simplício Dias era que Elias, Salviano e Antão fossem buscar Matias pelo beiço e na ausência deste, trazer uma compensação.
Saíram os três de madrugada com o sol ainda escondido e tocaram no rumo do Testa Branca pra antes que o sol saísse estarem no Buraco dos Guaribas. Armados com cacetes, uma espingarda e facas, chegaram ainda mal dando pra se ver um vulto a menos de duas braças naquele turvo. Apuraram o ouvido e nada. Mas se Sebastião estivesse em casa por certo daqui a mais um pouco iria começar o trabalho no curral. E aí era a hora de pegar o negro ladrão. Mas o tempo foi passando e nada do vaqueiro mostrar sinal de presença em casa.
Lá pra mais tarde os três chegaram ao terreiro e Elias gritou pelo nome do dono da casa, que ficava na frente algumas braças do curral. Chamou e chamou mais de uma vez e ninguém deu sinal de vida. Passado um tempo a porta se abriu e de lá de dentro saiu um negro velho e uma mulher, Olegário e Salvina. O pai e a mulher de Sebastião. Vendo Elias não desconfiaram de nada. Na mata próxima, de carnaubeiras agora que os passarinhos começavam a cantar estavam os outros escondidos. O que meu compadre anda fazendo numa hora dessas da madrugada? Se aproxime e venha pra dentro de casa!
Mas foi mandarem que se aproximasse o escravo de confiança de Simplício Dias, pra que os dois outros negros invadissem a choupana já de mão nos cacetes e desembainhando as facas. Elias deixou incontinenti de ser o conhecido e até amigo e quis saber do paradeiro de Sebastião Matias e do sumiço da vaca de dona Isabel. A mulher e o negro velho, atordoados ficaram gaguejando de medo. Cadê Sebastião? Quem sabe alguma coisa sobre o sumiço da vaca? Ninguém queria dizer que o vaqueiro estava na Granja. Pois já que ninguém queria abrir o bico iriam levar um dos filhos, pois era bicho que não iria fazer falta naquela casa. Salviano e Antão correram no rumo das redes e foram jogando tudo que era negrinho no chão. Foi muito susto e choro, a mãe desesperada e o velho Olegário tremendo e dizendo nome feio com Elias e Simplício Dias.
Viram entre os filhos de Sebastião Matias, uma menina de seus sete pra oito anos, que deveria ser a mais velha. Os outros eram três negrinhos e uma negrinha de colo, que estava se desmanchando em choro nos braços da mãe. Como ninguém deu o que falar do escravo e vaqueiro ladrão de vaca, iriam levar a menina. Quando o pai aparecesse e desse falta, que fosse buscar na casa de Simplício Dias, com quem haveria de se acertar.
Foi muito choro, pragas e desespero da mulher de Sebastião, do negro velho Olegário e dos quatro filhos de Sebastião naquele início de dia no Buraco dos Guaribas, abaixo um pouco do Testa Branca. Elias perguntou o nome da menina. Minelvina. Quantos anos tinha. Oito, indo pra nove. A mãe sem força e nem como resistir com aqueles três homens armados e prontos pra matar todo mundo foi dentro de casa buscar pelo menos uma muda de roupa pra menina. As duas chorando muito e o desespero todo tomando conta.
Levaram a menina, uma negrinha magra, pés cinzentos, olhos ainda cheios de lágrimas, de quase nove anos pra distante vila da Parnaíba. Passado um pouco de horas estavam entrando pela porta dos fundos da casa da rua Grande. Dona Isabel Tomásia foi chamada por Simplício Dias pra dizer que havia uma cria de escravo dentro de casa em paga por uma vaca roubada. Que desse comida, roupa, até um calçado, uma ocupação que fosse, pra não cair na graça de ser preguiçosa como muitas que conhecia em casa de vizinhos.
Mas nada de se criar negro mofino dentro de casa dando despesa aviltante e se achando com direitos! De sua filha Carolina, que nem passasse perto! Mas se aparecesse alguém de bom coração, até que podia dar a negrinha. Olhando bem, ainda era pouco o preço que o negro ladrão Sebastião Matias estava agora pagando pelo que fez. Roubar e levar pra Granja uma vaca, logo de dona Isabel?!
O vaqueiro não mais apareceu. Decerto com medo do castigo deixou o Buraco dos Guaribas. Passados uns dias, depois de uma conversa de fim de missa com dona Luizinha de Souza Basto, comadre vinda de São Luís, a mulher do governador da Parnaíba lhe deu a negrinha. Haveria se bem adestrada pra pelo menos lhe levar na cama uma xícara de chá. Que levasse pra pelo menos se salvar daquele mundo da pobreza em que a Parnaíba estava se enterrando. Porque a história da vaca já estava morta e enterrada.
Pádua Marques(*) cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.
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