sábado, 8 de junho de 2019

A CAVEIRA DO BURRO


Por Pádua Marques(*)

O velho Domingos Dias da Silva vivia batendo cabeça, tentando de tudo em quanto pra se aposentar pelo INSS. Tinha umas cabecinhas de gado, pé duro, não restava dúvida, mas que lhe davam uns poucos litros de leite todo santo dia. Pra ele e os dois filhos, Simplício e Raimundo. Este último sempre foi o mais rebelde, metido a valentão, rabo de burro. Do cais do porto até a Nova Parnaíba tudo era território dele. Como se dizia na época, ali Raimundo casava e batizava.
Raimundo passava o dia inteiro em cima de um burro velho cotó. Era o mesmo que o pai usava pra mandar os criados, os cativos, trazerem água do Igaraçu pra encher os potes da cozinha e as tinas de banho. Menino ainda, ia até a cozinha atrás de comer farinha com açúcar. Era sair da cozinha com a boca cheia e ir intimar com as duas filhas da criada, duas negrinhas já no tope, furando os bicos dos peitos.
A vida que queria quando foi ficando rapazinho era descer o barranco na direção do porto, lá embaixo, na boquinha da noite, tudo turvo, escuro de meter o dedo no olho, escondido da mãe Claudina Josefa, que nesta esta hora estava descaroçando um terço e pedindo a Deus que desse juízo pros filhos. Ia atrás de raparigas. Índias, vindas do outro lado do rio e pelo que se sabia, ainda parentes de longe de um tal Mandu Ladino, que dominou desde a Tutoia e Araioses.
O velho Domingos vivia coçando a cabeça de tanta preocupação porque numa daquelas o filho, vai que se engraça de alguma, acaba trazendo pra dentro de casa? Depois era preparar os couros e contratar advogado pra não pagar pensão alimentícia. Raimundo vivia metido em confusão e de vez em quando chegava em casa apanhado. Lá se danava seu Domingos a correr pra delegacia atrás de algum jeito pra tirar o menino da cadeia e evitar até que fosse pra o Complexo do Menor, onde havia muito rapazinho do Broderville, São Vicente de Paula, João XXIII e do Mendonça Clark.
Com essas e outras o velho português acabou perdendo muita cabeça de gado e até teve de vender terras pra pagar indenizações. Mas a vida de Domingos e de dona Claudina tinha uma satisfação neste rosário de lagrimas, o filho Simplício. Era na família o filho mais bom da cabeça. Tá certo que lá mais na frente gastou fortuna, o que tinha e o que não tinha com luxo desnecessário. Somente pra fazer inveja nos vizinhos. Tinha até uma banda de música, de rock, sabe-se lá o que, formada por uns negros e índios. Coisa sem futuro.
A ideia de Simplício era competir com as bandas inglesas e norte americanas garantindo espaço no mercado de show business. Meteu o pau em tudo. As vaquinhas que davam leite e carne de charque, algumas léguas de terras pras bandas do Cocal e da Testa Branca, o PIS, o FGTS. Tudo pra se meter em política. Perdeu tudo. Morreu pobre e ainda com fama de medroso que fugiu pras bandas de Granja no Ceará, quando o velho  Fidié, já se arrastando com a língua de fora, deu de cara ali na Guarita, invadiu a Parnaíba e levou o que pode e o que deu pra levar.
Raimundo, quando o burro velho cotó morreu, tratou de pedir ao velho Domingos Dias da Silva que fizesse o enterro com homenagens e uma sepultura com tampa de mármore e tudo o mais . Insistiu, mas insistiu tanto que o pai, já ficando caduco, mouco e perdendo a autoridade dentro e fora de casa, mandou cavar um buraco ao lado da igreja e na frente de casa, pra enterrar o diabo do burro. Não era na frente da igreja, era à esquerda, onde hoje está enterrado também o finado Cine Delta.
Foram chamados, o juiz, os vereadores, chefes de repartições públicas, as escolas, a banda de música e a criadagem ignorante. Todo mundo foi convidado pra ver o enterro do burro. Houve discursos, badalar de sinos, coroa de flores, colocação de fitas, choros e ranger de dentes. A Parnaíba parou pra ver ou acompanhar o enterro desse burro, que saiu lá do Campo das Mercedes e atravessou a cidade inteira. Igual, somente entronização de Papa no Vaticano.
Anos depois começou a decadência e a dor de cabeça sem fim dos Dias da Silva. Chamaram umas ciganas, que ficam ali perto da Banca do Louro, pra dizerem o que estava acontecendo e o que ainda iria acontecer. Como é que de uma hora pra outra o leite azedou e foi tudo por água abaixo? A fortuna, o brilho, a influência da família estava acabando e por quê?
Foi motivo de muita discussão e pedidos de instalação de audiência pública no senado da Câmara e tudo mais. E nessas idas e vindas, discursos e discussões sem utilidade e finalidade, procissões, rezas de terços, quermesses e leilões, as ciganas disseram a uma só voz que o segredo daquela decadência da Parnaíba estava enterrado em frente da casa de Simplício Dias da Silva e era uma caveira do burro! Daí que tudo que se tentou construir ou instalar naquele quarteirão, até hoje nunca foi pra frente.

Pádua Marques (*) Membro  da Academia Parnaibana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, colaborador do Opiagui

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