Por Pádua Marques (*)
A estrada de ferro ficava longe e era preciso caminhar aquele mar de areia todo até alcançar o Macacal, muito úmido e coberto de mato e insetos, mas nada que fosse impedimento pra Aprígio naquela manhã de maio de 1930, quando logo depois do cantar dos galos se arrumou e foi ganhando caminho. Nem passou pela venda do velho Canuto Beviláqua, na Guarita, perto da linha de ferro, onde comprava aguardente fiado e ainda levava alguma moeda pra abrir as apostas do dia.
Aprígio, o Rolo de Fumo, era um negro até que de boa altura, forte, retinto, de uns trinta anos, beiços grossos, cego de um olho, filho de Benícia, dos Tucuns. Andava pra cima e pra baixo o dia todo, da Guarita ao Alto do Cemitério, com pedras de dominó dentro do bolso e um galo de briga debaixo do braço, pronto pra encontrar com quem apostasse uma luta. O apelido, dado por causa da sua cor, ele não gostava, detestava, era capaz de dar bofete e puxar briga, mas não andava nunca armado, fosse faca, navalha ou cacete.
Passava na venda de Canuto Beviláqua, na Guarita, e além de tomar uma dose larga de aguardente ainda inventava de dar outra pra o galo. Os que estavam no balcão imundo naquele início de manhã achavam graça, pegavam na cabeça do bicho, alisavam as penas, davam ajuda de alguma moeda. E assim naquela vida sem muito futuro de uma Parnaíba sem muito movimento no de longe porto Salgado e apenas agora, o que dava sentido era o trem no Macacal, Aprígio ia levando a vida de vagabundo.
De certa forma Aprígio, o Rolo de Fumo, foi criado na casa de Canuto Beviláqua. Quando menino ficava ali por perto vendo quem precisasse de ajuda pra levar uma compra mais pesada e do dono da venda, algum recado, uma cobrança de fiado. O quitandeiro agora estava por trás de um balcão feito de caixotes, entre sacos de farinha, latas de querosene, fumo de corda, velas, cordas, feijão, sabão, anil, garrafas de azeite de coco e latas de banha de porco.
Canuto Beviláqua, de Viçosa do Ceará, veio trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí, mas um acidente o tirou do campo como assentador de dormentes. Quase teve a perna cortada por doutor Cândido Athayde, na Santa Casa de Misericórdia, tal a gravidade, mas mexendo os paus com um deputado em Teresina, conseguiu uma indenização boa e com o recebido botou aquela venda e era dela que passou a viver com a mulher, Nerina e a filha, Maria Lúcia, menina de uns dez anos.
Na Parnaíba daqueles dias a polícia vivia correndo atrás de vagabundos e desordeiros, essa gente que vivia explorando jogo de azar, fosse dominó, baralho de noite e alumiados com luz de lamparina, colocando galos pra brigar e fazendo disso meio de vida, criando confusão no porto Salgado, nos Tucuns, Curre, Guarita e Macacal. O intendente Marães Picanço e o chefe de polícia não aliviavam pra quem quer que fosse, mesmo que fosse gente de dentro da alta sociedade da Parnaíba. Jogo só no Cassino 24 de Janeiro!
Aprígio, o Rolo de Fumo, naquele dia de maio de 1930 não tinha muita esperança de um dia de sorte no jogo e na briga de galo. Passou na venda do padrinho Canuto Beviláqua, assuntou conversa com uns dois bêbados e ficou olhando pra cima e pra baixo na intenção de descobrir pra que lado haveria de seguir. Ali do lado o animal com que tirava dinheiro dos outros, pessoas que não conheciam os meios sujos daquele negro sem ofício ganhar a vida.
Nada de ir pra os lados do centro, no largo da matriz, onde estavam os hotéis, o Parnaíba e o Carneiro ou a pensão do sírio Nagib. Demorou um pouco e de repente se pegou a caminhar com o galo debaixo do braço, camisa de chita, uns poucos botões deixando o peito escuro à mostra, a calça de algodão encardida amarrada com um cinturão gasto, os pés calçados naqueles tamancos já finos nos calcanhares.
Foi olhando pra o céu, no sentido de quem ia pra o Moraes, na Coroa, e de repente viu com um olho só, aquilo que nunca achou de ver um dia na vida. Um negócio grande, escuro, esquisito, parecendo um charuto, fino nas pontas e grosso no meio, voando lento e nem assim tão baixo, seguindo como se quisesse, fosse quem estivesse dirigindo, procurando um lugar pra baixar. Aprígio, o Rolo de Fumo, ficou alto do chão. Não sabia pra que lado corresse!
Naquela aflição até esqueceu que levava o galo de briga. Olhou pra tudo quanto foi lado e viu que estava sozinho. Logo numa hora daquelas não passava uma vivalma! Passou um tempo segurando o cós da calça e tentando colocar os pés dentro da alça dos tamancos. Veio o medo de olhar pra o céu e ver mais coisa esquisita. Seriam os castigos de Deus que estavam chegando? Agora estava arrependido de não ter uma faca ou um cacete!
Depois aquela coisa foi seguindo, seguindo e sumindo por trás das carnaubeiras de Ilha Grande de Santa Isabel, por certo ganhando o rumo do Maranhão. Não foi mais tentar o jogo e voltou se pelando de medo pra venda de Canuto Beviláqua, na Guarita. O padrinho quando ouviu aquilo disse que já estava velho demais pra acreditar em coisa vinda do céu que não fosse coisa de Deus. Dois dias passados e Aprígio ficou sabendo pela boca dos entendidos de que aquele bicho era um tal de Zé Pelim.
Pádua Maques (*) cronista, contista e romancista, membro da Academia Parnaibana de Letras, cadeira 24.
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