Homenagem à Professora Carmem P. Barbosa (*)
Por Altevir Esteves
Do giro temporal transverso veio a ordem:
- Tem barulho de celular. Atende.
- Que diabo é isso? – bradou irritada a voz da Pineal – ainda é escuro! Ninguém pode dormir sossegado nesse corpo!
- São ordens, amigo. O SNC(**) desde ontem a noite já se prepara para isso – ponderou o hipotálamo – chamem os núcleos da base, fiquem atentos aos receptores e transmissores. Vamos ter trabalho.
O relógio foi silenciado. O corpo semidesperto tentou se levantar. Primeiro ergueu sua pelve, abduziu os membros superiores até 90 graus, flexionou quadris e joelhos. De lá dentro choveu bronca.
- Que ocorre? Saímos de 48 bpm e já estamos em 75 bmp, na cama? – o miocárdio reclamava – nem recebemos oxigênio do ar livre? Pô!
Não adiantava reclamar. O corpo não era um cadáver desconhecido. Tinha nome e CPF e uma missão a cumprir, doesse em quem doesse. Fez um esforço e finalmente colocou no chão o maior osso do tarso, o dolorido calcâneo, sempre prejudicado nas pisadas posteriores.
Mas precisava de algo mais. Vamos cambada! Quadríceps femurais, não se gabam que são fortes! Isquiotibiais, não se escondam atrás da coxa, venham trabalhar! Glúteos máximo, médio e mínimo, pensam que só servem para enfeitar e se acomodar na poltrona! Todos, ação!
Finalmente as falanges, uma a uma, alcançaram a parte anterior da sandália rasteira, os gêmeos gastrocnêmios se contraíram, pressionaram os sóleos, gritando:
- Bora, seus molengas! Hora de mostrar nossa força. Todos de uma só vez! 1...2...3... já! – e o corpo se levantou.
Receptores especiais fizeram os olhos se abrir e, logo mais, no banheiro, aguçaram a audição ao perceber que a uretra esvaziava a bexiga. Ao flexionar o maxilar para abrir a cavidade bucal para escovar os dentes, as papilas gustativas estranharam o sabor do que pensavam ser pasta dentária, mas era creme de barbear.
- Arrgg! – Num tá vendo não, filho de uma égua! Né possível!
Naquele momento de confusão os interoceptores e os visceroceptores gritaram por comida, e logo receberam, entretanto, foi a mensagem dos receptores gustativos do fundo da língua, resultado do café sem açúcar ingerido em jejum. Mas logo desceu faringe abaixo um bolo alimentar granulado, que a princípio errou o caminho, quando passava pela porteira da epiglote, fazendo o corpo engasgar e fazer estardalhaço, tossindo, com os olhos arregalados em desespero. Finalmente passou para a parte laríngea, pegando seu destino. Novo bocado engolido, às pressas, e o bolo chegava ao estômago. Mais à frente, no duodeno, já esperava o suco biliar, em grande quantidade por causa da noite preguiçosa, como também o suco pancreático.
- Vai beber água! Tou que não aguento! – gritaram os néfrons do interior dos rins, uníssonos, entre preocupados e sedentários – Desde ontem a noite não ingere líquidos, não viu a urina amarelo-escura! Parece que é bilirrubina pura! Assim o teu sangue não vai circular direito!
Estavam certos. Tão logo se pôs em movimento, os alvéolos pulmonares já sentiam o peso do sangue nojento que lhes chegava para filtragem. Grosso, pesado, rico em CO2, iria sobrecarregar todo o sistema circulatório e principalmente as bombas cardíacas.
Providências precisavam ser tomadas. Mas a hipófise já detectara o problema, deu os comandos necessários e a homeostasia foi viabilizada, com a ingestão de água e a reserva para durante a atividade física, pelo menos era o que esperava.
À medida que se davam as passadas, que a FC aumentava, o diafragma tentava se abrir mais, empurrando o espaço abdominal para baixo e, mais não o fazia, porque os músculos intercostais não ajudavam, pois sempre o corpo respirava de forma indevida.
- Para com isso! – gritou o ceco, já entupido desde ontem .
- Empurra pra frente, seu monte de merda! – respondeu o íleo, ainda sentido a aca que passara por ali há pouco.
Mirou longe um ponto imaginário tentando equilibrar a coluna vertebral, tendo em vista seu histórico de protusão nas vértebras lombares, porque uma dorzinha ameaçava o trabalho.
- Me ajudem, seus inválidos! – gritou para os quatro músculos do abdômen, mirando bem o reto e o oblíquo externo – não deixem esses tecidos adiposos saltarem, prendam-se, ajeitem-se!
Mas o corpo corria. Ou melhor, tentava. O estoque de glicogênio estava no limite, assim como a água no sangue era escassa. Uma sensação de moleza, de cansaço dominava. A FC só aumentava, muito embora o ritmo diminuía a cada km percorrido. Nem precisava de monitor cardíaco, pois a respiração estava entrecortada e já não controlava o inspirar e expirar como fizera sempre. De cinco litros de sangue bombeado por minuto, já se contava em vinte mil, pois batia 176 vezes, bem acima da máxima para a sua idade. Não dava mais.
Fim de treino.
Voltou para casa. Mal entrou foi logo para o banheiro. Tirou as roupas em um movimento flash e sentou-se no vaso, fazendo a articulação sinovial dos joelhos estalarem, mas enfim, expirou longamente e esperou.
Pouco depois, saindo do banheiro se enxugando, viu o outro corpo ainda a dormir. Era um modelo em decúbito dorsal, de genitália feminina, haja vista a presença do monte do púbis e as duas saliências das mamas. Os hormônios Testosterona tentaram trabalhar, mas o hipotálamo disse “não”. Você não tem condições, você não tem estímulos nem energia para fazer o que quer. Tudo o que você pode fazer agora é comer, defecar e dormir.
E o corpo se deitou, tal como um cadáver desconhecido, pelo menos para a esposa ao lado.
(*) A professora Carmem Patrícia Barbosa ministrou a disciplina de Anatomia Humana no Curso de Educação Física EAD na UNICESUMAR - Centro Universitário de Maringá, de quem o autor do texto foi aluno. Sua capacidade didática, seu conhecimento e sua empatia o inspirou a produzir o presente texto.
Carmem Patrícia Barbosa possui graduação em Fisioterapia pela Universidade Estadual de Londrina, especialização em Morfofisiologia Aplicada à Educação Corporal e à Reabilitação pela Universidade Estadual de Maringá, mestrado e doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Maringá.
SNC (**) - Sistema Nervoso Central.
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ALTEVIR ESTEVES - Poeta, escritor e maratonista. Membro da Academia Parnaibana e Letras. Cadeira 14 que tem como patrono Mirócles de Campos Veras.
perfeita!
ResponderExcluirCaro Altevir,
ResponderExcluirParabéns, o texto é agradabilíssimo
Muito obrigado, meu caro.
ExcluirInteressante e sugestivo texto.
ResponderExcluirAprendendo.
ExcluirRaimundo Nonato Conceição, carinhosamente o nonatinho. Homem de personalidade firme, defensor da moral e bons costumes, era funcionário público estadual,antes prestou serviços aos correios foi coletor de dados para o IBGE, administrou o setor de expedição da carteira de trabalho,depois tornou-se representante do ITERMA na regional de tutoia, professor de notória competência na sua cadeira de ciências físicas e biológicas eleito um dos mais conceituados diretores de todos os tempos do tradicional colégio Almeida Galhardo. Enquanto esposo um fiel e apaixonado companheiro que junto de sua esposa a professora Madalena Damasceno tornaram se um casal de referência. Viveu os tempos áureos e as mudanças da cidade que tanto amava, conhecedor da história e da cultura do nosso povo era católico missionário,onde foi sacristão no período de sua juventude. Sonhava com uma nova Tutóia assim como todos aqueles que a amam, tinha esperança de mudanças na qualidade de educação e acreditava em gerações futuras administrando com honestidade sua cidade natal, amante dos livros, da prossa, do saudosismo, do social com moderação. Discreto,um amigo que evitava aglomerações bem antes da atual conjuntura. Últimamente não saia de casa mais recebia os amigos para uma boa conversa, relembrando os momentos nostálgicos, quando sorria e se divertia bastante. Enfrentava os desafios do cotidiano, problemas que superava prosseguindo a sua pacata rotina, tinha como grande mestre seu amigo e compadre Monsenhor Hélio Maranhão entre outras pessoas de sua estima e consideração. Nonatinho o pai de Ramon, Carlos Fabre, Normanda, e Ilquecia, tinha oito netos e um milhão de amigos. Assim se foi Nonatinho discretamente como era, sem se despedir, aos 75 anos 8 meses e 22 dias, deixando uma bela história.
ResponderExcluirEdilson Caldas