domingo, 21 de julho de 2019

O URRO DO BOI



Elizeu Cardoso (*)

Quando pôs os pés para fora da rede e tocou o chão de terra batida, tentando achar os tamancos, Maria da Purificação estranhou que a mãe não estivesse ali deitada na outra rede. Por isso, se calçou ligeiro e saiu apressada, levantando a cortina fina do quarto. Ao vê-la de frente para a porta da cozinha, quis saber:
- O que foi, a senhora tá caducando, logo de manhã? Deixou a rede quentinha para vir pegar a frieza do quintal?
- Eu lá caduco, minha filha? – Respondeu a mãe, Vicentina Cazumba. Noventa anos vivendo naquele mesmo povoado. Herdara o apelido do marido, Melchíades Cazumba, brincante de boi, e fazedor de careta e torre – Tu que quando dorme morre por dentro dos sonhos. O mundo pode é cair, que tu não te dá conta. Eu não acredito que tu não ouviu esse boi urrando a noite inteira. Sono de velho é leve, feito cabelo de milho.
- Pois eu não ouvi mesmo. E aqui alguém tem boi? Que eu saiba ninguém, mal dá pra criar uns bichos no quintal.
Mas bastou uma semana e em todas as casas começaram a mesma reclamação. Primeiro pelos de mais idade, depois os adultos, e por fim as crianças, que não pregavam mais os olhos. Aquela choradeira a noite inteira. Até os cachorros ficavam incomodados latindo a todo instante.
- Esse povo tem rezado pouco! – Assegurou Domingos Preto, o curandeiro do lugar, que marcou novena e logo após o primeiro dia, entre cafés e bolos de tapioca, ouviu as pessoas tentando resolver aquela situação.
- Isso não é alma de vaca que morreu no parto? – Tentou explicar, Zé Ingá, o melhor roceiro dali.
- E boi lá tem alma, Zé? – Protestou Vicente Camurim, pescador de coragem inquestionável.
- Eu ouço todo dia esse urro, o que não sei é se é de boi ou vaca – Disse Maria Coco, cheia de dúvida – Porque cada dia tá de um jeito.
Pela Porco, que ainda não havia falado, alisou o bigode e tirando chapéu se abanou:
- Maria Coco, e isso lá importa, urro de boi ou de vaca? A danação é que ninguém dorme mais neste povoado. Quem dorme pouco, acaba ficando louco!
- Calma, gente – Acalmou os ânimos Domingos Preto – Primeiro temos que saber se alguém comprou algum animal aqui? - Todos se olharam, e pelo silêncio que se fez, tiveram certeza que ninguém havia comprado.

Só depois da quinta novena, foi que Ibrahim chegou de volta ao povoado. Havia ido na cidade, negociar sua produção de mel. E como sempre demorava-se por lá, bebendo o dinheiro da venda. Por ter chegado há pouco, ainda não tinha ouvido os urros, só os rumores. Tomando café na roda daquela noite, após a novena, teve uma lampejo, claro como um relâmpago por sobre o campo:
- Dona Vicentina Cazumba, a senhora se lembra que Melchíades Cazumba havia encomendando uma armação de boi para fazer uma promessa? Eu mesmo fui deixar lá.
- Como não lembro? Se nós que cobrimos o bicho. Fizemos a barra, os desenhos, chifres, canutilhos, miçangas... Minha vista gastou foi nesse tempo, de tanto tá na madrugada diante da lamparina. Ele queria fazer a promessa pelo nascimento da nossa primeira neta que nasceu antes do tempo. A menina teve pressa em ver o mundo.
- Pois é. A promessa não foi feita, porque ele morreu logo depois. E onde está o boi?
Ninguém havia pensado nisso. Nem mesmo Dona Vicentina Cazumba. É que foram dias tão tristes, depois da morte de Melchíades, fazendo-a esquecer até da promessa. Só então, lembrou que o marido havia colocado o boi dentro de um saco de estopa e guardado sobre as esteiras da casinha do quintal, lá no alto a roçar a cumeeira.
- Então é ele que tá urrando, sem a sua promessa! Amanhã mesmo pagamos. Arrume os brincantes e os instrumentos – Ordenou Dona Vicentina, cobrando de si aquela situação pelos esquecimentos.
Foram três dias de bumba-meu-boi. Até que cessaram os urros, e o sono invadiu todas as casas. Dormiram durante uma semana. Apenas Ibrahim ficara acordado brincando com aquela armação pelas ruas do povoado, entre goles de cachaça, já que era o miolo do batalhão.


(*)  Elizeu Cardoso é maranhense da cidade de Pinheiro. Professor, escritor, compositor e cantor e membro da Academia Pinheirense de Letras, Artes e Ciências.

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