sábado, 29 de junho de 2019

Simplício Dias à espera de Napoleão Bonaparte na praia da Pedra do Sal.

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*Pádua Marques

Se pudessem dizer pelo menos alguma coisa, um nome feio por menor que fosse e não parecesse ofensa e insubordinação, aqueles soldados famintos, com sede e os pés cheios de bolhas certamente diriam que o capitão Simplício Dias da Silva, aos trinta e cinco anos, estava fazendo papel de palhaço em cima daquelas pedras e com os olhos vidrados pra dentro do mar, na praia imensa e sem vida da Pedra do Sal, naquela manhã de fevereiro de 1808.
Tudo porque o governador da capitania do Piauí, Carlos César Burlamaqui, que passava o dia lá na distante Oeiras limpando as unhas com a ponta de um punhal e de vez em quando fumava um cigarro filado de um cabo puxa saco, cismou de mandar pra Parnaíba um estafeta, instruindo o capitão Simplício Dias da Silva de que ficasse com os olhos bem abertos porque o Piauí corria o risco de ser invadido pelo general e imperador Napoleão Bonaparte, com trinta e nove anos.
Burlamaqui recebeu notícias de que a França havia riscado Portugal do mapa da Europa e tudo indicava que o príncipe dom João corria risco de ser preso e até morto em Lisboa, se não desse a qualquer hora com a família nas costas da Bahia, o que realmente acabou acontecendo. Vinha de mala a cuia com um monte ministros e de assessores. Instruía o comandante militar sobre a defesa do litoral piauiense e confiava na perícia do parnaibano. Simplício se encheu de moral e armou logo de manhã uma confusão na cozinha porque a criada não havia cozido os ovos e o leite não havia chegado.
Depois de calçar as botas lustradas a esmero, fardado e medalhado, descendo pra frente da casa de morada, reuniu a tropa, nada mais que uns trinta soldados rasos, dois oficiais e uns cinco escravos como pessoal da logística. Marchar até a distante praia da Pedra do Sal, umas quatro léguas e meia de Ilha Grande de Santa Isabel pra dentro, esperar que aparecessem os franceses, que segundo alguns fofoqueiros da praça da Graça, seriam comandados pelo próprio imperador, que ao que constava, muito queria conhecer o delta do Parnaíba e principalmente o porto dos Tatus.
Simplício Dias da Silva naquela manhã estava com a cachorra! Mandou perfilar a tropa e a banda executar o hino de Portugal e aquela música do Airton Senna. Depois subiu as escadas à procura de dona Isabel Thomásia pra dar algumas instruções, em caso de ocorrer algum infausto na campanha. Os negros iam levando em grandes caixas de madeira, a farinha, a carne seca e nas ancoretas a água pra beber. Só e não tinha outra coisa não. Os soldados armados com espingardas velhas de encher pela boca, estavam um aqui e outro ali reclamando porque não haviam recebido as diárias.
Foi emocionante e ao mesmo tempo triste a expedição dos voluntários da Parnaíba que iriam enfrentar Napoleão Bonaparte e os seus soldados naquela que se chamaria a Batalha da Pedra do Sal. Choro e ranger de dentes. Ranger de dentes mesmo era pra os escravos tendo que levar na cabeça e nos ombros todos aqueles apetrechos, aquela arrumação toda sabendo que iriam voltar com a cara calçada de vergonha. Atravessaram o Igaraçu e entraram de ilha adentro. Simplício e os oficiais montados a cavalo e os soldados a pé e ainda cantando, que era pra ninguém ficar mangando ou reclamando uns dos outros. Castigo era meia dúzia de bolo de palmatória de número dois, aquela que tem um furo no meio.
Depois de cinco horas de marcha batida havia gente arrenegando de ter deixado o bem bom da caserna! Um sol de rachar os miolos. Carnaúba pra tudo que era lado e depois as enormes dunas de areia quente queimando o solado dos pés. Levaram um dia inteiro nessa arrumação. Simplício de vez em quando olhava pra trás pra ver se alguém estava fazendo corpo mole ou querendo correr no rumo do Labino. Ao final da tarde avistaram as pedras enormes. Os animais, os soldados e os negros estavam enfadados, mas ninguém reclamou ou deu um piu! O pessoal da logística foi logo tratando de montar as barracas onde iriam dormir o capitão Simplício Dias e os oficiais.

Passaram dez dias esperando um sinal que fosse vindo do mar. Comendo carne seca com farinha branca e bebendo água racionada. Ninguém tomava banho. Nos três primeiros dias os soldados passavam o dia marchando e recebendo instruções de combate. Mas do quarto dia em diante, como ninguém era de ferro e nem via e nem ouvia um sinal de vida, uns foram saindo e ganhando as pedras, outros pescando, outros fazendo poesia.
E outros se danaram a escrever os nomes de esposas, namoradas, amantes e casos nas pedras. Era letra de tudo quanto era jeito e tamanho. Anita, Solange, Marilda, Pretinha, Diane, Lucineide, Socorrinha, Angélica, Bruna, Fransquinha, Lurdinha, Patrícia, Rebeca. Encheram as pedras de declarações de amor, corações e de nomes. Simplício fazia que não estava vendo nada. Passava o dia riscando o chão de areia fofa com um graveto e mandando os oficiais menores procurarem o que fazer ou indo até a parte da cozinha de campanha olhar pra dentro das panelas.
A água e a paciência dos soldados estavam acabando, mas ninguém reclamava de nada. Tinha soldado que estava achando aquilo uma beleza que não iria nunca mais se repetir tão cedo. Simplício Dias da Silva começou a ficar impaciente e desmotivado. Olhava pra aquele mundo de água salgada e não via um sinal de nada. Já começava a criar uma escuma nos cantos da boca quando chamou todo mundo e mandou que debandassem. Napoleão deve ter desistido com medo. Só podia ser!
*Pádua Marques, jornalista, cronista, contista e romancista. Ocupa a cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras. Sócio efetivo do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, da Academia de Letras de Sete Cidades, entre outras entidades culturais no Piauí.

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