Altevir Esteves*
A equipe entrou na sala de aula da 4ª série do antigo primário. Os alunos já ficaram tensos com a comitiva vestida de branco. Era o dia da vacina, uma campanha nacional contra a febre amarela. Uma agulhada com os aparelhos de aço que precisavam ser esterilizados a cada injeção. Corria o ano de 1967 e o norte e nordeste brasileiros viviam uma nova onda da terrível doença, pois aquele mosquito Aedes aegypti já há muito tempo aprontava entre nós.
Na minha vez não precisei levantar a manga da camisa, porque esta era muito curta. A moça, sem nada dizer, mirou meu minúsculo músculo deltóide e mergulhou a longa agulha. Um calafrio me invadiu e por um instante eu pensei que iria desmaiar, como já ocorrera tantas vezes e eu me lembrava muito bem. Após a pressão interminável do êmbolo, puxou o aparelho. Tentou, quero dizer. Não sei por que motivo, talvez mal rosqueado, a agulha continuou presa na carne como se de acupuntura fosse, enquanto a operadora, com olhos estupefatos, segurava a seringa sem saber o quê fazer. Nem eu.
Mas havia um motivo. A enfermeira (assim a chamávamos), talvez inexperiente, mas obediente, aplicou no lugar indicado e assim atingiu uma cicatriz de terceiro grau que ganhei aos seis meses de idade, ao cair sobre um defumador para muriçocas, feito de esterco de vaca, em brasas e fumaça. Se não morri queimado, poderia morrer ali, apagado de pavor. Escapei, mas peguei a malária, para o quê não tinha vacina e assim passei um ano com febres diárias. Mas não morri, como se vê.
Não tardou dois anos e já estava de frente a outra agulha infernal. Mordido por um cachorro doido (raiva), fui sentenciado pelo Dr. Pacheco, na verdade um enfermeiro, experiente e grande trabalhador a quem o povo de Alto-Longá deve grande serviços. O nobre homem, talvez sempre estressado de tanto trabalho e contando com pouco ou quase nada de recursos, era conhecido pelo seu mau humor, o que lhe rendeu o apelido de “Doutor Garrancho”.
Vinte injeções na barriga! Todo dia venha aqui! Não pode faltar nem um dia! Se faltar vamos começar do zero!
E aplicou a primeira.
Vinte, sem faltar, veio repetindo meu irmão até chegar em casa e continuou repetindo para minha mãe. Mas, faltei.
Ocorreu que era época chuvosa, o nosso inverno. Quando já tinha tomado quatorze doses, eis que uma chuva intensa fez o riacho transbordar e neste dia não pude tomar a 15ª. Começar do zero, grunhiu meu irmão à beira d’água. Só não tentamos atravessar porque a correnteza era tanta que o barulho das águas se fazia soar a distância.
Faltou por quê? - e sem esperar resposta - Eu avisei, eu não disse? Sem falhar! Começar do zero! Quer ficar doido? Tudo de novo! Eu avisei!
E aplicou de novo a primeira dose. Ao todo foram 34 picadas na frágil e agora sofrida pele ao redor do meu umbigo. Fui dado como curado, sem ficar doido. Não tive essa certeza.
Devia contar 17 anos quando um prego enferrujado entrou no meu calcanhar. Dor de lascar, mas o que pareceu mesmo me acabar foi saber que tomaria uma vacina, a anti-tetânica. E tomei. Pior, voltei pra casa com uma incerteza, pois me disseram que a ferrugem chegou primeiro no organismo e que assim o imunizante não teria efeito. Até hoje não sei se o prego estava mesmo danoso, se a vacina fez o seu trabalho. Mas não peguei tétano, nem nada.
Hoje me deparei com uma nova agulha. Fui fotografado, comemoramos. Moças educadas, lugar limpo, higiene à vista. Era pra Covid-19. Cheguei calado e calado, saí. Uma picada no ombro, no mesmo deltóide, mas a cicatriz tinha migrado para o bíceps e a agulha não ficou presa. Ao voltar para casa, sem riacho cheio, sem dúvidas profundas, achei que com aquela dose tinha me curado, finalmente, da febre amarela, da raiva e do tétano, de uma só vez, e que a Covid era só um pensamento, um sonho ruim, uma coisa invisível que perturba e maltrata.
Nos últimos meses as coisas têm rodopiado tanto ao redor da minha cabeça, que às vezes acho que a febre amarela tenha mudado de cor, que a cicatriz amoleceu, que a raiva pegou em mim e que o bacilo tetânico tenha feito efeito contrário e assim me fortalecido. De qualquer forma, tenho uma dose extra no meu sangue e uma esperança enorme tomou conta de mim.
“Que tenham vida e a tenham em abundância”, disse o Mestre de Nazaré. Além desse ensinamento encorajador, podemos seguir Erasmo de Roterdã e viver a loucura, porque ela é toda alegria e não tem tempo para tristezas e incertezas. De qualquer forma sei que posso seguir o meu caminho, mesmo sabendo que pessoas caem pela estrada da Vida e que temos que parar para socorrer.
Vida que segue e segue cada dia mais transbordante, pois há vitórias mil, embora tenhamos lágrimas a chorar.
Altevir Esteves* funcionário aposentado do Banco do Brasil, escritor, poeta, maratonista e membro da Academia Parnaibana de Letras - Cadeira nº 14.
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