sábado, 5 de setembro de 2020

CONTOS DE PÁDUA MARQUES

 A morte espera no caminho da escola

Por Pádua Marques *

Benício, o mais velho dos quatro primos, ia caminhando na frente dos outros por cima da linha de ferro entre o Catanduvas e a casa da professora Vicentina Brandão no Macacal naquela manhã de sol que prometia ser forte àquela hora da manhã daquele março de 1928. Depois e por baixo na vereda, formada entre a linha e o barranco, vinham os irmãos Vicente e Joana e fechando a fila, Jonas, irmão de Benício. Uma obrigação de todos os dias desde quando entraram na escola pra desarnar nas primeiras letras.

Lá longe e chegando já perto de algumas casas de taipas cobertas de palha de carnaúba, uma mulher estendia roupas de dormir numa cerca. Do outro lado da linha de ferro, descendo o barranco, naquele imenso capinzal com uma carnaubeira aqui e ali a perder de vista no rumo do Sossego, algumas vacas magras e de chifres pequenos, coisa de cinco ou seis, comiam de cabeça baixa aquela grama úmida da madrugada. Decerto que as roupas na cerca de varas eram pra secar depois de terem sido mijadas durante a noite por algum menino pequeno ou um velho.

Os meninos passaram e seguiram caminho no rumo da Parnaíba. A mãe de Benício havia dito que no ano seguinte ele e o irmão Jonas já iriam estudar no Grupo Escolar Miranda Osório, de seu Zé Narciso. Sobre os primos Joana e Vicente, ainda era coisa não decidida pelos seus pais. Por enquanto a escola era aquela de Vicentina Brandão, no Macacal, com outras doze crianças pobres, calçadas de tamancos, de rostos suados e roupas encardidas, vindas do Catanduvas, dos Campos e até da Coroa, quase chegando na beira do rio Igaraçu.

E naquela caminhada pra escola de dona Vicentina Brandão, sem ninguém por perto, os três meninos e a menina sobem e descem a linha de ferro, saltam e colocam pedras entre os dormentes e os trilhos, abrem os braços, gritam pra ouvir o eco, jogam pedras dentro das poças de água cheias de cabeças de pregos. Jonas sempre está com a baladeira dentro do saco de pano e corre se agachando à procura de piçarras pra atirar nos xexéus e nas catirinas que ficam em cima dos tocos de cercas. Benício vem à frente apontando esse ou aquele calango. O tiro come solto e os calangos fogem.

Mais à frente avistam uns urubus que estão devorando um animal grande dentro do mato. Não dá pra ver o que seja, mas só pode ser algum jumento velho ou uma vaca, mordido de cobra ou morto do mal, assim se babando todo. Aquela carniça no meio do tempo faz com que os meninos coloquem as camisas ou as mãos nas ventas. Benício e Vicente pegam piçarras e jogam na direção pra espantar os bichos. Os urubus levantam voo e vão se acomodar na copa de carnaubeiras ou nas cercas de estacas dos terrenos dos Borges. Os meninos comemoram aquela façanha e seguem caminho.

Quando chegam na porta da escola de dona Vicentina Brandão outros meninos e meninas já estão esperando a professora abrir a porta de casa e logo em seguida todos se acomodam nas cadeiras. Silenciosos e em fila cada um vai se sentando. Agora não é mais preciso que cada um traga seu tamborete. Mas mesmo assim os doze assentos são disputados. Os menores mais à frente, os maiores mais atrás. A professora queria que as cinco meninas sentassem nas cadeiras da frente e puxassem as saias cobrindo os joelhos.


Os bolos de palmatória, objeto de terror da sala de aula e ali segura por um prego na parede mal pintada, podem começar logo cedo se este ou aquele menino se comportar mal, responder errado, fizer zoada, incomodar os outros e se apresentar em desalinho. Benício, o maior de todos na pequena sala de aula daquela escola do Macacal, é o disciplinador de todos, de seu irmão Jonas e de seus primos Vicente e Joana. Em algumas ocasiões pode ir buscar a palmatória e dar bolo em qualquer um a mando de dona Vicentina Brandão.

A casa onde está a escola de Vicentina Brandão é até que de bom tamanho, caiada de um azul bem claro, de taipa e coberta de palha de carnaúba. Duas janelas pra frente da rua no Macacal, com a porta de meia. Na sala da frente era de ser pra sua família, as duas irmãs, o pai seu Raimundo Inácio, pescador e a mãe dela, dona Joana, que fica na cozinha o dia inteiro. A sala de aula, no meio da casa, com entrada por dentro, fica ao lado com duas janelas dando pra o quintal, onde se criam galinhas e patos, tem o jirau de lavar a louça de cozinha. As plantas são dois pés de mangas, um limoeiro e outro, um pé de goiabas.

O chão é de tijolo de barro cru. E tem um corredor grande e escuro onde estão nas paredes os armadores das redes de dormir das moças. Mobília pouca. Um banco de potes, os canecos, um armário, tamboretes e uma mesa de bom tamanho. Decerto que o lugar das refeições da família. Nas paredes os quadros de santos, São Francisco, Nossa Senhora da Conceição, São Raimundo Nonato.

Vicentina é a única das filhas de seu Raimundo Inácio e dona Joana a ter estudado. Mas isso foi há muito tempo em São Luís, no Maranhão, quando morou com uma madrinha. Quando voltou pra dentro da casa dos pais foi logo dizendo que queria abrir uma escola. Era coisa de se admirar a rua inteira no Macacal, a filha de seu Inácio, sendo professora, a casa cheia daqueles meninos com os calções remendados, uns limpos, outros nem tanto, as brincadeiras e as risadas deles, as perguntas dela e as respostas deles, tímidos, curiosos, de olho em tudo que vinha da lousa. Um dia quem sabe Vicentina podia ser até chamada pra ser da Escola Normal.

Um quadrado de madeira escura, preto mesmo, de pouco mais de um metro, pendurado na parede. E ela, Vicentina Brandão, também professora de catecismo, fica ali na frente da lousa ensinando a contar, diminuir, multiplicar e dividir, ler e escrever. Faz perguntas o tempo todo a um e a outro. Tem satisfação do que está fazendo. Olha um por um e conhece todos eles.

Sabe ela quais são os mais necessitados, os mais pobres dos mais pobres. De repente um menino, perto de Vicente começa a bater um tamanco contra o outro e aquilo incomoda. Uns enredam, chamam por ela. A professora vai certeira com o olho e a unha pra um puxão bem dado na orelha e um carão. A sala de aula é tomada por um silêncio de medo. Outros meninos não querem ter o mesmo castigo. Ninguém manga ou acha graça. Aos poucos vão uns mais afoitos voltando ao que é ordinário na sala de aula e na

esperança de que ela encerre mais um dia. Finda a aula daquele dia todos voltam pras suas casas.

No caminho as mesmas brincadeiras de atirar em calangos, assustar os passarinhos, caminhar se equilibrando com um pé só nos trilhos da estrada de ferro, caminhando em fila e contando nomes e coisas de adivinhação, contando histórias, fazendo brincadeiras da boca de forno. No meio do caminho Jonas se lembra de que é preciso voltar pra pegar sua sacola de pano e a tabuada de aprender a contar. Voltou na mesma hora. Os outros seguiram caminho se combinando que ele depois iria atrás. Seria por pouco tempo indo e voltando.

Mas a tentação de mexer em tudo, de ver tudo, de conhecer tudo fez Jonas seguir o trem de ferro que naquele momento fazia manobras dentro da estação saindo de Parnaíba. Ficou abismado com aquela máquina soltando fumaça e aqueles homens rudes, sujos de graxa, suados, praguejando por isso e aquilo, falando nome feio. Não se conteve e subiu num dos últimos vagões. Passou a caminhar dentro de um deles e quando se deu conta estava o trem em movimento saindo noutra direção. Jonas quis saltar, gritou pedindo pra sair. Não deu. Saltou e foi colhido por uma das rodas.






Pádua Marques*  cronista, contista membro da Academia Parnaibana de Letras - Cadeira 24

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