A GALINHA PEDRÊS
Mundica não gostava dos
irmãos por perto quando estava brincando. Jorge e Toinho, o mais velho dos
três. Às vezes nem era de prestar atenção quando Demerval chegava da loja na praça
Coronel Jonas, perto do Mercado Central, frente com o armazém de seu Antonio
Tomás da Costa. E que vendia pregos, fechaduras, correntes, panelas de ferro,
machados, pedra de amolar, gaiolas, armador de rede, azeite de mamona, betume,
foices. De um tudo pra trabalho de homem.
Perto do Natal seu
Demerval levou os três filhos pra dar um passeio no centro da cidade. Não
queria menino dentro de casa naquela época e com dona Ana ocupada fazendo
roupas pra eles irem à missa do Galo. Menino dentro de casa era coisa de muita
perguntação, aperreio sem fim. E além do que, já era hora de mostrar pra os
meninos como era que ele ganhava a vida! O dono da Casa dos Pregos, de Demerval
Carvalho Batista & Irmão, na praça Coronel Jonas, era cheia de fregueses o
dia e a tarde inteira.
Levou os três filhos no
domingo, dia de movimento na praça do mercado, com muita gente vinda do
Macacal, da Guarita, dos Morros da Mariana trazendo frutas, verduras, camarão,
peixes pequenos, mariscos, flores, e até bonecas de pano e barquinhos feitos de
pindoba. Os três nem dormiram direito e se acordaram foi cedo. Fazia tempo que Demerval não saía com os
filhos sem dona Ana junto. E no mercado chegando foi aquela coisa de alegria
pra não acabar nunca mais!
Na esquina havia um homem
gordo, junto da mulher franzina vendendo garrafadas, purgantes pra vermes, pra
matar piolho, pra curar coceira. Tinha mel de abelha, sementes, cascas de pau.
Chamava as pessoas que iam passando, mostrava guardadas dentro de umas garrafas
as lombrigas e puxava de debaixo de uns caixotes uns comprimidos e ia dando
preço. Mais lá na frente uma vendedora de temperos mostrava uns pimentões muito
bonitos. Outra oferecia camarão seco numa urupema em cima de um tamborete.
E seu Demerval ia puxando
os meninos e caminhando no meio das filas de gente no rumo de dentro do mercado
de carnes e peixes. Antes passou perto de uma barraca onde se vendia rede.
Perguntou preço e nem esperou resposta. Perguntou ao dono por perguntar, pra se
sentir em casa. Os meninos iam acompanhando o pai e a menina ali mais perto
segurando sua mão grossa e suada. Mais lá no meio da praça se ouvia um barulho
de gente tocando sanfona.
O homem era um sujeito
magro, os dentes da frente quase saindo da boca, vestido de camisa de riscado
abotoada até o nó do pescoço e de calça de brim encardida. Estava muito suado,
falava e gesticulava desesperado mostrando uma caixa de madeira vermelha
coberta de um pano de laquê também vermelho. Era um mágico anunciando as
maravilhas do seu circo que estava na Guarita pra logo mais de noite. Mundica
ficou parada olhando pra aquilo e com vontade de ficar mais pra ver o que
aquele homem tinha na caixa.
A maravilha da cor das
frutas era coisa de encher os olhos dos meninos. E olhando pra eles Demerval se
lembrou de comprar uns pirulitos de açúcar queimado. Ao seu chamado o menino do
tabuleiro veio e retirou um pirulito pra cada um dos seus filhos, recebeu a
moeda e se afastou calado, sumindo no meio de toda aquela gente. Mais adiante
uma mulher vendia bonecas de pano. Eram bonecas de boca pintada, vestidas de
papel crepom vermelho, azul, cor de rosa, amarelo. Tinham os olhos pintados
muito grandes como se quisessem dizer que estavam com medo e que queriam ir
embora dali.
Mais ali depois, um
rapazinho mostrava seu serviço de amolador de facas e tesouras. Tinha nas mãos
um boneco de talas de madeira, coisa de uns oito centímetros, pintado de várias
cores que, se apertando embaixo numa espécie de escada e puxado por cordões,
aquilo saltava virando bunda canaça. Pra frente e pra trás. Pra trás e pra
frente. E ali mesmo ia juntando gente e depois saindo pra mais irem chegando. Depois
vinha o cheiro das tapiocas e dos beijus de coco, as talhadas de cuscuz de
arroz e de milho, feito de madrugada e agora ali ainda mornas.
Demerval queria mostrar
novidade daquela Parnaíba que ele conhecia como a palma da mão. Conhecia todo
mundo. Sabia quem tinha dinheiro guardado e quem comprava pagando à vista. E
foi avistar e mostrar para os filhos naquele domingo o tirador de retratos. Um
senhor já de muitos anos, bem parecido, tinha perto umas caixas de madeira e
outra em cima de um cavalete, coberta com um pano preto.
Na frente, a coisa de uns
quatro passos em reta, estava um tamborete na frente de uma armação com um
lençol, feito parede onde as pessoas ficavam sentadas esperando ele terminar o
serviço, mexendo numa manivela e nuns botões, ajustando o olho numas lentes e
pedindo que prestassem atenção. Mas os meninos não se interessaram por aquilo e
foram se afastando.
Vendo a admiração dos
meninos pelo brinquedo do rapaz amolador de tesouras, Demerval Batista voltou
um pouco, meteu a mão no bolso da calça e comprou um boneco saltador pra Toinho
e um pião de madeira pra Jorge. Eram os presentes de Natal pra eles naquele
ano. Agora era escolher no meio daquele chafurdo, daquele mercado já cheio de
gente e de tudo em quanto, alguma coisa do agrado de Mundica. Talvez fosse até
o caso de deixar pra depois, mais pra próximo e sendo coisa pra mãe dela, dona
Ana escolher.
De repente veio de lá de
dentro do mercado de carnes e peixes uma multidão se afastando, dando passagem,
abrindo caminho e no meio daquela algazarra de uns e de outros saiu um homem
muito bem vestido, limpo, perfumado, cara de rico e lustrado. Era seu Roland
Jacob, homem viajado. Se sabia na Parnaíba ser até francês pelo que diziam. Passou
pelo vendedor de pregos, fez um aceno de cabeça e foi indo embora seguido por
um negrinho que ia carregando uma cesta carregada de tudo que era caro.
Mundica achou de se
afastar um pouco e quando voltou disse pra Demerval que queria uma galinha
pedrês que havia visto mais lá na frente. Causou espanto no pai. Como é que ele
trazia eles três pra um passeio no Mercado Central de Parnaíba, dias antes do
Natal de 1946 e ela Mundica, sua caçula, ia logo escolher de presente uma
galinha pedrês? Que arrumação mais besta era aquela? Os irmãos caíram na
gaitada, mas até que concordaram já dando opinião nisso e naquilo pra quando a
galinha chegasse em casa.
Demerval Batista Carvalho
abriu a bolsa pela terceira vez e acabou comprando a galinha. Mandou o vendedor
pear a bicha com uma embira, cortar as asas e pra adiantar as coisas disse que
já estavam indo embora pra casa. Foi muita alegria pra Mundica quando chegaram
e a mãe dona Ana se admirou daquele presente. Mas foi lembrando logo que a
galinha era pra ser criada no quintal! Foi só coisa de descuido de dona Ana pra
Mundica andar com a galinha debaixo do braço pra cima e pra baixo.
Dona Ana passou a não
gostar daquele bicho dentro de casa e incomodando, saltando pela cozinha,
cagando no corredor e perto do fogão, procurando lugar pra servir de poleiro.
Os dois meninos acharam de ir no mato atrás de varas e fizeram uma casinha no
quintal. Coisa até que bem feita. Foram na cozinha e arranjaram milho, uma
vasilha pra água de beber. Colocaram até um pedaço de camisa, um molambo pra
ela se deitar como se fosse gente quando está com frio. Não largaram mais a
galinha de mão.
Mundica achava a galinha
a coisa mais linda deste mundo. Aquelas penas coloridas de um cinza e preto
amiudado, a crista, os pés, o pescoço. Dona Ana já estava ficando sem saber o
que fazer com aquilo tudo. Os meninos haviam voltado pra rua a jogar pião e
brincar com o boneco de madeira. Outros meninos vieram de outras ruas e de
outras casas. O Natal estava perto, a guerra na Europa havia acabado há mais de
um ano.
Até que um dia, já
encostando no dia de Natal, quando Mundiica foi ver no quintal de casa, a
galinha tinha ido embora. Fugiu. Criou asas e saltou por cima da cerca no rumo
dos Campos. A menina agora sem brinquedo passou o dia chorando com saudades da
pedrês. Foi um alívio pra dona Ana. De noite quando Demerval Batista chegou da
loja na praça Coronel Jonas, Mundica veio se fazendo de triste e de dona de
coisa perdida, contou tudo. Naquele jeito de pedir sem abrir a boca, queria
outro brinquedo que não desse trabalho.
Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24. |
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