Por Pádua Marques(*)
João Batista veio se equilibrando devagar, quase engatinhando e se colocou na proa da embarcação até ter como ver aquele movimento de muitas pessoas importantes naquele dia 25 de janeiro de 1939 no Igaraçu, quando a Panair inaugurava uma estação flutuante pra seus passageiros no Rosápolis, em Parnaíba. O menino, o mais miúdo dos três amigos, pouco mais de oito anos, ainda trocando os dentes, filho de Cesário e Rita, queria ser canoeiro, vareiro de barca, pra conhecer a Água Doce e o João Peres, onde tinha muito peixe.
Mas o que dentro de mais alguns instantes seus olhos veriam, nunca mais iria se repetir, porque aos dez anos, João Batista morreria afogado depois de saltar entre canoas tentando mostrar destreza pra uns ingleses no porto Salgado em troca de moedas. O pai trabalhava numa fábrica de pilar arroz de doutor Cândido Athayde. Rita, a mãe, era lavadeira quando precisava trazer alguns trocados pra dentro de casa e dar de comer pra muitos meninos e sua mãe, avó de Joãozinho, dona Chica, velha e aleijada.
No meio da canoa, em pé, estava Sebastião, o Capote Valente, menino de dez pra onze anos, cabelo pixaim da cor de fogo, franzino e com as bochechas cobertas de pintinhas escuras. Se zangava quando algum desconhecido chamava seu apelido. A ponto de ameaçar com tiro de baladeira. Seu pai, com o mesmo nome, foi embora pra o Maranhão em busca de emprego numas embarcações pra os lados de Floriano e nunca mais voltou em Parnaíba. Uns diziam que já tinha outra família. Outros diziam que havia morrido depois de uma briga entre companheiros de trabalho do cais em Uruçuí.
Mais do meio pra popa da canoa estava Felisberto, o mais velho dos três. Tinha de doze pra treze anos, calção encardido, os bicos dos peitos inchados, já uma risca de bigode por cima do beiço, olhos negros e duros quando fitava os outros e as coisas. Gostava de saltar da proa das canoas e mergulhar na água pra logo depois sair lá longe cuspindo e achando graça.
Filho terceiro de Raimunda, uma mãe solteira, no Curre, queria ser estivador, pra ganhar dinheiro e sair nos fins de semana pelos cabarés. Já engrossando o talo da pinta, vivia coçando as virilhas e gostava de se gabar de ter visto mulher nua com os homens fazendo saliência. Os outros ouviam e ficavam entre encabulados e admirados.
Os três meninos ficaram ali dentro da canoa esperando o acontecimento. Dentro de mais algum tempo, por volta do meio dia, um sino deu aviso de uma batida pra depois, um ronco alto e causando admiração, medo em alguns e apreensão em Celso Nunes. O Baby-Clipper S43 da Pan American Airways tocou a água do rio e veio atracar direitinho no cais flutuante. Levou algum tempo até que umas dez pessoas entre homens e mulheres, pessoas bem vestidas, de sapatos lustrados, os homens de bengala e chapéu e terno de linho branco, desembarcaram e foram recebidas com muitas palmas.
João Batista, Felisberto e Sebastião Capote Valente ficaram ali dentro da canoa, admirados e com medo daquele bicho de ferro e que soltava fumaça e de lá ouviram sem entender do que se tratava aquela cerimônia, todo o discurso de Mirócles Veras ao lado da pianista Guiomar Novaes. A artista seguia pra Miami, Texas e Nova York, nos Estados Unidos da América do Norte. O avião e tudo nele causaram uma inquietação e ao mesmo tempo contentamento.
Os três meninos do Curre taparam os ouvidos e fecharam os olhos. Nunca na vida haviam imaginado alguma coisa parecida. Estavam acostumados a ver barcos, vapores e outras embarcações menores atracando no cais do porto Salgado, mas nunca uma que voasse e andasse por cima da água ao mesmo tempo e de dentro saísse gente e bagagens. Aquilo era muito pra acreditar! Passaram a contar as pessoas, a quantidade de carros, mas nada fazia acreditar que fosse se repetir com outros meninos.
Logo em seguida o sino tocou outra vez e logo apareceu outro avião, bem maior, o Commodore. O primeiro, o Baby-Clipper S43, na mesma pisada levantou voo e foi embora levando outros passageiros, entre eles a pianista Guiomar Novaes. Tudo aquilo foi motivo de encantamento pra os três meninos. Mesmo de longe pouco deram atenção aos discursos, pra quantidade de carros vindos de Parnaíba. Quando tudo passou e aos poucos o Rosápolis foi ficando silencioso naquele inicio de tarde, João, Felisberto e Sebastião, os três foram tomando o rumo de casa. O medo havia acabado, mas aquele bicho de ferro ficou batendo na cabeça deles pra nunca mais sair.
(*)Pádua Marques - cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras, romancista, cronista e contista.
Gostei!!
ResponderExcluirMuito boa a crônica.
Conto.
ResponderExcluirUm conto. É a nova literatura parnaibana.
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