Por Pádua Marques (*)
Sebastião e Simplício vieram da parte de cima avisar que o doutor engenheiro Miguel Furtado Bacellar estava chegando ao acampamento e eles tinham que esconder as garrafas de aguardente que estavam dentro dos matulões. Se ele pegasse os homens bebendo e se embriagando no acampamento, decerto que seriam mandados embora e até presos. Os outros homens, dois ou três, foram se levantando e tomando o rumo dos petrechos de serviço, os facões, foices e machados e tomando o rumo do mato.
Uns mais à frente foram se limpando da areia do mato nos calções encardidos e mais outros foram derramando a bebida que havia sobrado daquela festa no local de trabalho. Logo em seguida chegou junto com outros altos funcionários, uns cinco ou seis, o engenheiro Miguel Furtado Bacellar. O encarregado do acampamento veio dizer que tudo estava em ordem, o serviço ia correndo bem e os homens estavam muito determinados, prontos pra acabar aquele serviço e esperar as novas ordens vindas lá de cima.
Foi chegar e foi olhando como estavam os cassacos. Olinto trouxe pra perto o filho Pedro, um meninote de uns quatorze anos de idade. O pai, agora doente, tossindo, enfraquecido, levou pra derrubar mato junto com ele. Livrou de mandar pra o Arsenal de Marinha, no Curre, feito o outro, Simão, de dezesseis anos pra mais, e que dele não se sabia se ainda era vivo, morto ou se ganhou o mundo. Nos momentos em que o pai se danava a tossir e escarrar sangue, o menino corria no saco e vinha de lá trazendo uns panos pra limpar.
Miguel Furtado Bacellar passou demorado pelo acampamento de palha naquele meio de mato. Veio tomar pé dos serviços. Os homens ficaram se olhando e esperando as ordens pra continuarem o serviço. Onofre, rapaz solteiro, vindo do Perypery, estava inquieto. Havia deixado a mãe viúva e duas irmãs. O que recebia era guardado pra fazer uma casinha no Bebedouro, em Parnaíba, terra onde pra ele, corria muito dinheiro. Ao seu lado estava Anísio, vindo de João Peres, Maranhão, casado há uns cinco anos com Maria do Livramento, uns dois anos, na Tutoia. Quando se embriagava se punha a cobrir a mulher de nome feio e lhe cobrava ciúmes.
Honorato, como sempre estava um pouco afastado. Caboclo de uns quarenta anos, baixo, sisudo, arredio, entroncado. Diziam que era do Maranhão, São Bernardo, e de lá estava fugido depois de ter matado um sujeito muito rico com uma mão de pilão e que vivia ameaçando sua família. Criava um cachorro, chamado Peixe, com quem andava pra cima e pra baixo, até dormindo com ele e ali de longe ouvia e via o movimento e as conversas do engenheiro e seus auxiliares.
Perto dos outros e sentado num tronco grande de sabiá, estava Pedro Ernestino, um negro retinto, vindo de Igarassu, no Pernambuco. Tinha as mãos grandes, peito largo, um dente de ouro na frente e uma cicatriz no cano do braço. Alto e desconfiado com tudo, andava armado de faca no cós da calça encardida. Era, dizia, pra acalmar quem bulisse com ele. Já havia estado pelo Amazonas e pelo Pará, de onde saiu corrido só com a roupa do corpo. Miguel Furtado Bacellar entrou e ficou frente a frente com o velho Eleutério, quase cego de um olho, de pouco mais de cinquenta anos e mascador de quina. Em respeito pela idade o engenheiro, de pouco mais de quarenta anos, lhe apertou a mão e bateu de leve em seu ombro.
O mais velho do acampamento estava acompanhado dos dois filhos, João e Pedro, seus meninos, como dizia. Os meninos de seu Eleutério passavam o tempo de serviço de derrubar o mato entre a Parnaíba e Amarração, cantando embolada. Um dizia uma trova e o outro respondia na mesma pisada! Eram a alegria daqueles homens rudes, famintos e com sede, nus da cintura pra cima e armados de foices, facões, machados, se defendendo de sezão, toda sorte de doenças. Aquela teimosia de Miguel Furtado Bacellar, que coisa mais sem sentido! Meses, dias sob o sol e a chuva, espantando mosquitos, mordidos por marimbondos e abelhas, comendo feijão com carne salgada e farinha seca, angu de milho.
Homens que passavam semanas e meses longe de suas famílias. E aquelas três malditas léguas entre a Parnaíba e Amarração, naquela mata perigosa, a ponte de ferro vindo da Inglaterra pra ser montada no rio Portinho, onde morreram dois homens afogados e que ninguém deu conta. E ali perto alguns desses homens já fazendo casas de taipas no caminho da linha de ferro, na altura do Buraco dos Guaribas e mais pra cima, entrando de Macacal pra dentro. Aquele serviço que, ao que parecia, nunca teria fim!
Naquele dia de setembro de 1916 o acampamento dos cassacos nos serviços de mato na Estrada de Ferro Central do Piauí, estava entristecido. Silício, um companheiro, de uns trinta anos de idade, vindo de Piracuruca, morreu se esvaindo em sangue depois de ser mordido por uma cobra. Era um dos poucos que sabia ler, escrever e assinar o nome. Quando estavam descansando, ele se punha a escrever no chão com um graveto, fazendo cálculos de quanto tinha em dinheiro. Agora estava morto.
Não teve masca de fumo ou outras beberagens que dessem jeito. Ainda tentaram levar em lombo de um burro pra Santa Casa de Misericórdia, mas o veneno foi mais rápido. Morreu babando e com a língua de fora. Pedro, filho de Olinto, o ainda menino, ficou olhando tudo aquilo, mas agora não podia ter medo. Horas depois estava brincando com a cobra morta pelos cassacos. Aquela morte de Silício foi uma comoção entre aqueles homens. O corpo foi enterrado ali mesmo.
Nos seus pertences foram encontradas duas mudas de roupas, uma navalha, um pão de sabão, uma caderneta com anotações dos dias trabalhados e uma quantia em dinheiro. O encarregado saiu perguntando sobre quem sabia de algum parente dele em Parnaíba. Era de Piracuruca. O dinheiro recolhido entre suas coisas foi levado pra ser guardado no escritório e depois levado pra sua terra. Entre os homens agora voltando à calma e ao serviço, ficou silenciosa aquela pergunta nos olhos de, quando aquilo, aquela obra iria acabar.
(*)Antonio de Pádua Marques Silva, jornalista, contista, cronista e romancista, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.
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