domingo, 1 de setembro de 2019

SOLTARAM AS ONÇAS



Vitor de Athayde Couto (*)

Domingou. Tudo funciona regularmente em Parnásia, como em todos os domingos de sol. Praia de manhã, almoço mais tarde, cochilo, banho seguido de muita brilhantina e laquê nas cabeças adolescentes. E Lancaster! Tal uma grande lagarta, a fila do cinema Paradiso vai se mexendo para a sessão das 18:30. Duas horas depois da vesperal, logo em seguida ao the end, todo mundo corre até a praça, em busca da tão ansiosamente esperada meorinha de caminhada, dando voltas, cantadas e comentando o filme: as moças rodam no sentido horário; os rapazes, no sentido contrário. Hora de se amostrar móde um relógio novo, saia plissada, conjunto Banlon, camisas-volta-ao-mundo, tudo novo, comprado no Rio, pela Cruzeiro. Só os malas incluídos e muito abestados não rodam. Ficam parados, no meio da praça, falando merda e frescando com quem passa.

A azaração tem que acontecer entre 20:30 e 21:00, quando termina a missa da catedral, de onde saem os pais corujas, de braços dados, arrastando as filhas não cinéfilas e alguns filhos bundões, direto pra casa. Quem fica com quem não fica, nunca se sabe. Mal se conhecem os sonhos, pelo menos até a hora em que chega a porra da realidade: 21 horas, anunciam as badaladas do sino desafinado da matriz. Hora de soltar as onças.

Esvazia-se o estacionamento socialmente estamentado pelos diferentes espaços reservados para automóveis, lambretas e bicicletas (ninguém falava báique), conforme as diferenças patrimoniais entre as famílias. Quem mora perto caminha pelas calçadas seguras, exceto os malas incluídos que vão de carro, ali pertinho, só para se amostrar. Ah, ia esquecendo o estacionamento de balecos da gente diferenciada. Ficava mais distante, depois do vento, móde o fedor de bosta. Agora são 21:08, a praça entristece e se desertifica. As tartarugas da pérgula nadam, silentes. Permanecem só o guarda e os seus eternos interlocutores de plantão, animados pelo corote. São os malas desincluídos, deficientes e mendigos sem teto, sempre de braços cruzados, olhando pro nada.

“Soltaram as ôôônças!”, grita um culumim, à distância. “Queima o tabaco da êêêma!”, grita outro. “É a tuáááma, Datilôôôia!”, mais outro. E assim, de culumim em culumim, a praça escurece em meio aos gritos saídos de bocas invisíveis, escondidas do guarda.

Os globos dos pequenos postes de ferro se apagam, móde economizar energia da usina da Rua Sete. Protegido pela escuridão, alguém arrisca e grita: “Seu Fulano é côôôrno!”. Normalmente, seu Fulano é quase sempre um grande e respeitável negociante rico que acabou de comungar, na missa da catedral, logo depois de pedir perdão pelos pecados, principalmente as mentiras, conspirações políticas, sonegação de impostos e traição conjugal; ou por ter espancado a mulher e uma frágil filha adolescente. Ele sabe que, amanhã, segunda-feira, começa tudo de novo. Mas Deus é bom e tudo perdoa sete vezes sete vezes sete... Afinal, ainda nem se sabia o que era preconceito racial, logo, isso não era pecado. Ser limpinha, mesmo sendo preta, era a primeira condição para ser uma boa curica ou babá. A segunda condição eram as chamadas “referências”, em que tudo vale.

Já em casa, enquanto repassam na mente as últimas imagens da vesperal, as moças de família vão sonhar, metidas em babydolls de náilu. Não sem antes de resumir no querido diário, sob a luz do abat-jour, as cantadas ouvidas entre 20:30 e 21:00. Para elas, a vida se concentra nessa meorinha sagrada, pela qual esperam a semana inteira, entre rezas e promessas fáceis. Isso ocorre em quase todas as semanas do ano. As moças de família odeiam as onças invisíveis que expulsam, com seus relógios, as pessoas da 2 praça. Odeiam o tempo que passa, e também o inverno. Quando chove, não tem domingo. A semana pula direto, de sábado pra segunda-feira. Sem praça, sem graça.  

Ainda na náite, alguns rapazes de família de bem (dizia-se: “da sociedade” haha) também abandonam a praça. Em vez de irem direto pra casa, dirigem-se aos cabarés, à procura de mulheres virtuais esgotadas pelo fim-de-semana, nas altas horas de domingo, quando resta só o bagaço. “Bem, pelo menos é mais barato”, lembrou um dos rapazes, para consolo das mesadas dos companheiros lupanáticos. Sorte é de quem tem pai cabarezeiro, pois é ele quem escolhe a “modelo mais top” e negocia o cachê, quando o filho completa 15 anos. No clube, a filha debuta. No cabaré, o filho é da puta que o pai escolhe e lhe apresenta – a sua primeira vez. Mimo de aniversário. Depois, ele apresenta o médico, a farmácia, os remédios... e o permanente sorriso orgulhoso de quem é pai de macho. Cepãdã, se ocorrer algum acidente da natureza, esse “paitriarca”... sei não... ou mata, ou se mata. Em compensação, presente de pai não-cabarezeiro é só livro. Que ódio! Quase sempre é o “Meu catecismo de preparação para a crisma” ou “Tarzã, o rei da jângal”. Mas poderia ser pior, por exemplo, um “Pequeno dicionário da língua portuguesa”, enquanto a irmã ganha “O pequeno príncipe” ou “Reinações de Narizinho”. E ainda com recomendação de colocar uma capa de papel impermeável fosco, e cuidar bem! “Não risque, porque vai servir para a sua irmã caçula!” haha.

Na praça, agora escura, só se vê uma lanterna, intermitente, móde economizar pilha. É o guarda brincando de vagalume. Pra afastar a solidão, apita e foca a lanterna nos cururus. Já no rumo dos cabarés, o magote grita, de uma distância segura: “O guarda não é mais aquele / o que que se faz com ele...”, etc. Sobretudo etc., porque soa mais forte. Pura vingança, porque o guarda dormiu e não cuidou da praça – que acabou sendo destruída.

Ao longe, no silêncio truvo, já dá pra ouvir o som da vitrola do primeiro cabaré, situado na rua da Mungubeira, xis com o Beco do Xêramijo. A voz grave do Nelson Gonçalves mixa com os chiados do vinil que gira no pick-up Garrard, cuja agulha há muito está vencida. Difícil achar outra, nem mesmo na Discolândia do Rei Momo. “Fica comigo esta noite / e não te arrependerás...”. Nunca entendi por que “lá fora o frio é um açoite”, se na Parnásia faz um calor da porra haha. A galera aperta o passo, mas, ao chegar na Mungubeira, alguns rapazes hesitam, devagar, quase parando. Faz que vai mas num vai. Finalmente, encontram uma pequena janela lateral, aberta. Corações trepidam. Aproximam-se mais. As cabeças grandes se apertam na janela, móde espiar.

 No salão principal, o corpo de um bêbado dança, sozinho, abraçado a outro corpo, invisível, de algum fantasma real. Por cima da carne seca, uma gata prenha se lambe. Outro bêbado dorme sentado à mesa, com a cabeça dentro de um prato onde um resto de farofa acabou grudando na brilhantina do seu cabelo. Um viado lava os últimos copos americanos de cerveja. Umas três ou quatro mulheres sobreviventes permanecem sentadas, em silêncio, à espera de alguma esperança. Elas ouvem a música com atenção, pela milésima vez, como se fosse a primeira. À sua frente, a cerveja quente remanesce do último freguês já apagado da memória. De vez em quando elas se revezam pra virar o mesmo disco do Nelson Gonçalves. Uma se levanta, troca o lado A, depois lado B, lado A-B-A-B-A... até o infinito. Aproveita a levantada e vai mijar mais um pouco de cerveja quente no penico indiscreto. Joga o produto pela janela do quintal. Depois, volta. Sempre ao mesmo lugar, onde reencontra o seu fiel campo energético que lhe dá mais alguma sobrevida noturna, enquanto espera a luz do dia para dormir.

Do lado de fora, ainda na janela, os corações adolescentes saltam de emoção. Emoção que nunca será esquecida, porque, na idade do urubu, é mais fácil ser feliz. Com muito ou com pouco. Tanto faz. Mesmo que o cabaré tenha sido apenas um sonho de menino.

(Este texto inédito integra a série “Crônicas de Parnásia”, livro em edição)
(*) Vitor Athayde Couto é um dos seis candidatos que concorrem à  cadeira de número 27 da Academia Parnaibana de Letras.

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