sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Coronel Queixada, governador da Barra do Longá e herdeiro de Simplício Dias.

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Pádua Marques(*)

Simplício Dias da Silva havia tempo estava no leito esperando a morte. Mas suas roupas e alguns pertences já haviam ganhado a rua pela porta dos fundos e dados pra gente ordinária, mendigos, vagabundos, loucos de toda sorte e escravos sem senhor na vila de São João da Parnaíba. Queixada, um desses, acabou ficando com o uniforme e as dragonas douradas, o mesmo uniforme que o coronel em festas de gala anos antes ostentava durante as missas com a família, nas paradas da milícia ou quando recebia políticos, visitantes e cientistas estrangeiros.
Queixada agora andava pra cima e pra baixo com o uniforme do coronel Simplício Dias, que de certa forma conseguiu enganando Elias, depois deste ter mentido pra dona Isabel Tomásia. Queixada era um negro fosco, o cabelo pixaim de tão sujo era cor de cobre, de baixa estatura e muito feio. Tinha os caroços dos olhos amarelos e era chegado a uma aguardente e um cigarro barato. Se gabava pra todo mundo, desde a Coroa até os Tucuns, que era filho de uma escrava de dentro da casa do governador da vila da Parnaíba, quando o coronel ainda tinha alguma moeda na burra e os soldados de Fidié ainda não haviam saqueado as joias e as pratarias da igreja de Nossa Senhora da Graça.
O apelido de Queixada ele ganhou de gente na rua por ter os queixos largos e a cara quadrada. Dona Isabel Tomásia imaginando que o pedido de Elias era uma lembrança, deu o uniforme, mas não as medalhas e outras condecorações. E muito menos o punhal e a pistola. Vai que por qualquer descuido de Elias estas armas acabassem nas mãos de algum malfazejo, trocadas por miudezas e dando motivo pra confusão e até algum crime?! Do jeito que Simplício Dias estava não dava mais pra defender ninguém.
O certo é que o uniforme com as dragonas douradas acabaram nas mãos de Queixada. Como dona Isabel Tomásia não deu as medalhas, ele achou de colocar no presente valioso toda sorte de objetos. Botões dourados ganhos de uniformes de comandantes de navios, medalhas de santos, cacos de vidros e até chaves de algum armazém abandonado lá pros lados do antigo estaleiro. Era tudo o que achasse servia pra encher o peito. E assim ia cumprindo a sina de doido. E que por ter fama de doido recebeu o apelido de Miolo Mole. Mas não se caísse na besteira de falar esse apelido.
Corria atrás com pedra e paus ou o que achasse pela frente. Era o terror de meninos, mulheres da vida, outros vagabundos que passavam o dia inteiro caturando um serviço no porto Salgado. E foi assim que recebeu de um comandante de navio a patente de coronel, coronel Queixada, governador da Barra do Longá. Gostou tanto do posto que agora andava sempre com um cacete curto entre o cinto velho e a calça como se fosse uma espada. Ora, deu que virou! De manhã cedo, mal o movimento dos armazéns, lojas, repartições do governo e embarcações no porto davam início, lá estava o coronel Queixada fazendo inspeções. Era atracar um navio vindo o Maranhão e lá ia ele mandando abrir bagagem e mercadoria, se fazendo de autoridade. Os mais medrosos até que obedeciam. Obedeciam pra não criar confusão. Outros achavam graça, zombavam.
E pelo serviço ia ganhando um vintém aqui e outro ali. Queixada perdeu o juízo quando ainda novo um pedaço de madeira caiu em sua cabeça no estaleiro onde trabalhava no outro lado da Ilha Grande de Santa Isabel. Foi o bastante pra que tão logo se recuperou dos ferimentos fosse apelidado de Miolo Mole. Era de entrar na igreja do Rosário dos Pretos e de altar em altar, de olhos fechados e batendo os beiços ir fazendo o pelo sinal da cruz uma porção de vezes. Depois, sem ver nem pra quê, saía correndo desembestado pelo meio do largo e ganhava a rua entre a igreja da Graça e a rua Grande.
E os vendedores de frutas, negras vendedoras de coco, cocada, temperos pra panela, manga e caju vindos da Ilha de Santa Isabel, gente fazendo compras pras cozinhas de seus senhores, ficavam gritando, Coronel Queixada! Coronel Queixada! Viva o Coronel Queixada! Miolo Mole, fela da puta, filho de uma égua! Miolo Mole! Depois quando passava a doidice instantânea ele ia se proteger dos insultos e das pedradas na sombra dos armazéns. Dona Isabel Tomásia, dado o cuidado com o marido quase morto, pouco se interessava pelo que vinha da rua. Se sabia de algum alvoroço, brigas entre embarcadiços e mulheres da vida, entre os Tucuns e a Coroa, era de ficar calada.
Em casa o coronel Simplício Dias ia de mal a pior. Vinham os vizinhos, gente importante e até antigos desafetos ver de perto como estava o sofrimento lento daquele que dentro de mais alguns dias iria fechar pra sempre as capelas dos olhos. Vinham, ouviam da dona da casa como ele estava e saiam de cabeça baixa. Mas na rua e no agora pouco movimento da outrora vila rica da Parnaíba e nos lugares mais distantes, o que se sabia era que Simplício Dias da Silva já era morto e enterrado dentro da igreja. Havia até quem dissesse que havia morrido e jogado no mar ou estava enterrado entre os cajueiros no distante Testa Branca.
No porto Salgado as conversas entre os comandantes de navios vindos de Tutoia no Maranhão eram de quem iria ser a maior autoridade da vila da Parnaíba depois da morte de Simplício Dias da Silva. E nesse fulano disse isso ou disse aquilo as mercadorias iam se acumulando no porto, as lojas tendo prejuízos, as encomendas rareando. O coronel Queixada ia de porta em porta ouvindo, espalhando conversa e aumentando por sua conta. Um dia encontrou um negro da sua igualha e lá pelas tantas se danaram a brigar por causa do uniforme. Brigavam agora por causa da patente. Quintiliano, o outro negro sem ocupação, disse que Queixada era coronel porque sua mãe era curica da cozinha de Simplício Dias.
Se atracaram numa rua dos Tucuns e Quintiliano rasgou e arrancou a manga do uniforme do coronel Queixada. Botou força e as medalhas todas caíram e se espalharam na areia imunda do Cheira Mijo. Queixada deu de garra na espada de cacete e meteu na cabeça de Quintiliano. Foi sangue pra danar. As mulheres e os meninos gritando e os marujos dando vaias e até apostando ver quem haveria de ganhar aquela queda de corpo. Chamada a milícia, os dois foram presos. O chefe de milícia, Lucas Patriotino Ferreira, homem de dentro da casa de Simplício Dias, mandou dar logo de entrada uma dúzia de bolo de palmatória em cada um, tomou e ateou fogo no uniforme causador da briga.
Qual o motivo desta briga, negro? Negro não, coronel Queixada, governador da Barra do Longá! E quem te deu patente, negro? Onde já se viu negro coronel e ainda mais da Barra do Longá?! Foi comandante de navio do Maranhão quem me deu patente! E desde quando comandante de navio vindo de Tutoia do Maranhão dá patente na vila da Parnaíba? Negro, vê se te cala senão dou cobro de ti!
A dúzia de bolos foi mesmo que dar mingau de milho em boca de menino! Dentro da cela os dois negros ainda com as mãos em fogo se pegaram de novo. Sopapos, gritos, mordidas e tudo o mais. Ainda não havera de acabar aquela arrumação? O jeito foi levar pro tronco e dar uma dúzia de chibatadas em cada um, nu do jeito que veio ao mundo, enquanto todo mundo ficou dando gaitada.
(*)Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana  de Letras.

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