segunda-feira, 8 de julho de 2019

A MOEDA PARA NOSSA SENHORA DA GRAÇA










Por Pádua Marques(*)

Simplício Dias estava pedindo pressa naquelas obras da Alfândega da Parnaíba, já autorizada pelo Rei Dom João VI há dois anos. Ele descia de casa no rumo do cais do Porto Salgado, acompanhado do escravo Elias. Andava entusiasmado com o movimento no porto e naquela manhã saía pra ver de perto o serviço na nova repartição. Não era lá de deixar o sobrado e a companhia de dona Isabel Thomásia, sua mulher, dos filhos e dos criados.
Não era de gostar e nem poder mais andar pelo meio da rua na Parnaíba. Já temia pela vida e evitava o de sempre, alguém pedindo isso ou aquilo, um adjutório pra um filho estudar em São Luiz ou no Recife, um batizado ou casamento, uma vaga no serviço de sua casa ou das repartições do governo, essas coisas. Mas naquela manhã achou de sair depois do café e seguiu pela rua até o cais. Lá estavam os barcos e canoas, vindos de Tutoia no Maranhão, e de Ilha Grande de Santa Isabel, desembarcando tudo em quanto era tipo de mercadoria.
E naquele sobe e desce de gente, de negros e embarcadiços nus da cintura pra cima dando no meio da canela, aos gritos, o cheiro forte de aguardente, suor, farinha e de sacos úmidos de maresia, Simplício ia se aproximando do cais e o movimento ia crescendo. Ao verem aquele homem tão importante e tido como poderoso,  aquela gente ia abrindo caminho e os de mais posses e projeção tirando os chapéus naquela reverência costumeira.
Elias era um negro baixo, de pouca graça, os caroços dos olhos amarelados, como quem teve dordolhos, com pouco mais de quarenta anos. Foi presente de um compadre de São Luiz, no Maranhão. Tinha só um braço e caxingava da perna direita. Contava que aquele aleijão foi coisa de uma briga com um paraense por causa de serviço no cais. Andava a pouco menos de dois passos de Simplício,  sempre que o patrão saía à rua. Por dentro da calça de algodão ordinário, uma enorme faca. Mas que ninguém lhe imaginasse sem um braço não ter destreza.
Simplício ia sendo cumprimentado aqui e ali mais na frente cumprimentando um capitão de navio, um dono de carga de algodão, oficiais da Marinha e gente mais de feição e bem vestida, vinda de São Luiz e até da França entre os embarcadiços. Mas no meio daquele mundo de gente não andavam mulheres. A rua e o cais eram de homens e para os homens.
Simplício e Elias estavam quase chegando à esquina do porto, pra direita, em direção à alfândega quando de longe um negro se abaixou pra pegar alguma coisa no chão. Olhou pra um lado e pra o outro e foi logo colocando a moeda no bolso. Mal deu tempo da moeda esquentar na mão calosa. O coronel da Vila da Parnaíba viu e apressou o passo. Antes que o negro se perdesse no meio dos outros estava perguntando quem era e quem era seu dono.
Sem resposta de imediato e tomado pelo susto o negro ficou arquejando de medo. Achou ou roubou aquele dinheiro? Achado não era roubado, calculou responder. Mas se limitou a dizer que quando era achado por um cativo e esse cativo não tinha dono, o achado era de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. E Deus estava na igreja e a igreja estava lá no alto e era do senhor Simplício Dias da Silva, por merecimento governador da Parnaíba!
Disse daquele jeito submisso de quem pedia amparo. Logo, aquela moeda era do coronel. Tremendo feito uma vara de pé de sabiá verde, o negro baixou a cabeça e foi logo entregando o achado pra Simplício Dias, que no tempo de um piscar de olho colocou a moeda no bolso da calça.
Elias ao ver o rosto de seu dono coberto de suor foi logo pegando um lenço de algodão meio encardido e o enxugou. Era sua função além da segurança pessoal ser serviçal de cuidados extremados. Simplício ainda olhou pra um e pra outro como que mandando que concordassem com sua medida e foi saindo devagar em direção às obras da alfândega naquele final de novembro.
O negro estivador, que até bem pouco tempo estava achando que tinha sorte demais na vida com a moeda, foi saindo e se perdendo no meio dos outros. Simplício agora estava dando ordens no meio dos operários na obra da alfândega. Um pouco longe do cheiro de sacos de algodão, de fumo e carne seca naquele cais cheio de mercadorias empilhadas pra embarque. Meteu a mão no bolso e se sentiu satisfeito. Olhou pra Elias e deu um resmungo curto.
Pra que negro com dinheiro? Pra gastar com mulher da vida e com aguardente, fumo pra mascar e depois sair caçando confusão até ser preso e levar surra amarrado em tronco? Deixasse aquela moeda em quem sabia e conhecia valor de dinheiro! Negro não sabia valor de dinheiro! Negro não sabia nem rezar um Pai e Nosso e queria ficar com dinheiro? Dinheiro era da santa, Nossa Senhora da Graça. Lá no cofre estava seguro.

* Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras. 

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